terça-feira, 6 de abril de 2010

Um telefonema na madrugada

Celso Pinheiro de Oliveira


No alto do prédio do banco, as lâmpadas do painel eletrônico indicavam 02h37minhs daquela madrugada fria e garoenta.

Da janela de seu apartamento, Fernando tinha uma nítida visão do painel, que insistia em alternar o passar dos minutos com a lembrança da temperatura.

11:32hs - 16º, 12:03 - 15º, 1:21hs - 15º, 2:05hs -14º. Tempo e temperatura regendo a sua insônia, mais uma noite.

Tateando pela sala as escuras, dirige-se a sua poltrona favorita. Na mesinha de canto, procura espaço no cinzeiro lotado, para apagar o cigarro que já lhe queimava os dedos.

Desliga a televisão fazendo sumir o chiado irritante do canal fora do ar. Agora, o silêncio era absoluto. Pouco a pouco seus ouvidos vão se acostumando ao silêncio, fazendo com que a percepção para os pequenos ruídos da casa fosse ampliada a máxima potência.

Conseguia ouvir claramente o tremelique ocasional da geladeira (como se o motor estivesse "pegando" no tranco), barulho do elevador sendo acionado por algum vizinho recém chegado, a descarga do vaso sanitário do inquilino do andar de cima - um bom exemplo de uma bexiga constante e notívaga.

O pensamento de desistir da espera e ir para o quarto, em busca do repouso que seu corpo tanto pedia, veio novamente. O telefone não vai tocar, ela não irá ligar - pensa -. Para que prolongar esse sofrimento?

Mas, ontem, ele havia tocado. Por essas mesmas horas ele havia tocado. E Fernando pode ouvir a voz que já não ouvia há mais de três meses.

-Alo....
-Fê, sou eu, Melissa. Te acordei?

Apresentação desnecessária. Aquela maneira de chamá-lo era absolutamente única. Fernando sentiu uma descarga elétrica atravessando o seu corpo, que entrou em estado de alerta total.

Tentando recobrar a calma, responde fingindo uma naturalidade não existente.

- Não, não acordou não. Estava revisando um planejamento que tenho que apresentar amanhã. Pode falar. Está tudo bem com você?

- Não está nada bem não... - A voz de Melissa estava "pastosa", aflita, como se ela tivesse chorado ou bebido- E, sabe porque não está nada bem? Porque descobri que sou uma idiota, uma maluca, que larguei o melhor homem do mundo.

- Como assim?

- Você, seu tolo. Abandonei você, a única pessoa que sempre me amou, que sempre me entendeu!

- Melissa, o que está acontecendo? Porque isso agora, depois de três meses? Você desapareceu e sabe que essa não foi a primeira vez. Aliás, me pareceu bem consciente quando foi embora. Disse que eu te sufocava, que não aguentava mais a nossa rotina, que tinha grandes planos para a sua vida...

- Errei feio, né Fê? Eu não sei onde estava com a cabeça... As vezes até parece que uma outra pessoa toma conta de mim, sei lá, quando vejo já fiz a burrada.

- Pois é, Melissa, só que isso não é legal, a gente se machuca.

- Eu sei Fê, eu sei o quanto te fiz sofrer, quanto te magoei. Mas eu também estou sofrendo muito e acredito que esse sofrimento me amadureceu, me fez ver tudo de outra maneira. Entendi que ninguém consegue ser feliz se não tiver ao lado alguém que a gente realmente ame, um parceiro que nos apoie e proteja.

-Eu tentei ser essa pessoa, Melissa. Sempre procurei te amar e proteger com todas as minhas forças.

- Sei disso... estou te pedindo perdão mais uma vez... Preciso que você me perdoe e me dê uma outra chance. Tudo será diferente...

- Você disse isso das outras vezes. Estamos sempre recomeçando. Depois, você vai embora e sou eu que fico muito mal.

- Isso nunca mais vai acontecer Fê, eu te prometo. Só preciso que você confie em mim uma última vez. Juro que farei de você um homem muito feliz.

- Eu não sei...

- Vamos combinar uma coisa? Vamos marcar um encontro. Quero que você olhe nos meus olhos e sinta como eu mudei. Que posso ser a mulher que você sempre sonhou e merece. Só mais uma chance, Fê. A última, eu te prometo. Posso te ligar amanhã para acertarmos o encontro?

- Olha, Melissa, eu acho que é melhor....

- Obrigado, meu amor. Você não vai se arrepender. Agora vai dormir e sonhe comigo. Eu também vou sonhar com você. Fê, eu te amo, viu? Um beijo grande.

Fernando ouve Melissa cortar a ligação sem que tivesse tempo de dar a sua resposta.
Mais uma vez ela. Outra vez a história se repetindo.

Os cacos do seu coração nem bem haviam colado e lá estava ela, abalando o frágil equilíbrio conseguido nesses três meses de ausência.
As idas e vindas de Melissa, os telefonemas na madrugada, os perdões e arrependimentos, tudo de volta. E como sempre, a solidão e o abandono como recompensa.
Ele sabia que precisava de ajuda ou sucumbiria novamente a sua presença, aos seus apelos. Como em todas às vezes anteriores.

O som do portão da garagem do prédio sendo aberto trouxe Fernando de volta à realidade. O relógio do banco marcava 02h50min. A essa hora, provavelmente, Melissa não iria mais ligar.
Mas como o improvável, por molecagem ou pirraça, sempre teima em acontecer, a campainha do telefone dispara, cortando o silêncio da noite como uma faca afiada.

Fernando permanece imóvel, tentando controlar cada músculo do seu corpo. Sua cabeça girava, girava. Todas as emoções misturadas em um conflito angustiante.

O telefone toca novamente. Fernando sente suas forças esvaindo, não vai resistir.
Puxa o telefone da base e, antes que atendesse a ligação, sente alguém tomando suavemente o telefone da sua mão.

- Alô.

- Ah, acho que a ligação caiu errado. Eu estava ligando para o telefone do Fernando. Desculpa incomodar essa hora da noite.

- Você não ligou errado não, Melissa.

- Mas... quem está falando?

- Sou eu, a Clara. Nos conhecemos há uns dois anos atrás, em uma festa de fim de ano do escritório. Sou a advogada que trabalha com o Fernando.

- Clara? Acho que estou me lembrando de você. Mas, o que você está fazendo na casa do Fernando a essa hora?

- Melissa, você vai me desculpar, não querendo ser indelicada, mas acho que isso não é mais da sua conta, não é?

- Mas como não? Eu sou a mulher dele. Tenho todo o direito de saber.

- Você foi a mulher dele. Agora você é só uma lembrança, sofrida sim, mas apenas uma lembrança. Nós estamos juntos agora e tenho certeza que farei o Fernando muito feliz.

- Mas isso é um absurdo! Me chama o Fernando... quero falar com o Fernando!

- Melissa, o Fernando está aqui ao meu lado, ouvindo toda a nossa conversa. Já estávamos dormindo e você nos acordou. Vá dormir você também e, por favor, não nos incomode mais.

Clara desliga o telefone e retira o fio da tomada.
Carinhosamente abraça Fernando e seguem juntos para o quarto.
Para ele, uma nova vida tinha iniciado.