quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um conto de Natal

Celso Pinheiro de Oliveira

Vitor sentia suas pernas pesadas ao caminhar pela rua naquele fim de dia.
A temperatura era um pouco mais amena, apesar do sol ainda brilhar. Seis horas da tarde pelo horário de verão, cinco horas pela natureza, que teimava em cumprir o seu calendário normal.
Uma praça cheia de crianças lhe chamou a atenção. Toda florida e bem conservada, com bancos colocados sob as árvores para proteger seus ocupantes do sol.
Encaminhou-se para o banco mais afastado, sentou-se e procurou esconder o seu silêncio por trás do alarido provocado pelas brincadeiras da criançada.
Sentindo-se extremamente velho, apesar dos seus cinquenta anos incompletos, achou natural estar em um banco de praça ao entardecer.
Tentava afastar dos seus pensamentos a conversa com o diretor da sua empresa. Conversa difícil que, por mais que lutasse para afastá-la da mente, insistia em voltar a todo o momento.
Gerente gráfico, com mais de dezoito anos de trabalho na empresa, fora chamado pelo seu diretor logo após o almoço.
Após todas as perguntas preliminares de praxe, tipo como ia a família, se os filhos estavam indo bem na escola, se Vitor já havia comprado todos os presentes para o Natal que se aproximava, o diretor iniciou o discurso cuidadosamente preparado.
- Meu caro, como você já deve ter notado o nosso movimento aqui na gráfica vem caindo muito esses anos. Nesse último, em especial, tivemos uma redução de mais de 30% em nossas vendas! A situação está insustentável e se não tomarmos as providências necessárias corremos o risco de fechar as portas.
Vitor foi sentindo o seu corpo afundar na cadeira. Parecia, apesar de não querer acreditar, pressentir o rumo que aquela conversa iria tomar.
- Sabe, Vitor, eu prefiro ser direto, principalmente com um funcionário como você que sempre teve um comportamento e um nível de trabalho excepcional. Mas, a verdade é que estamos sendo obrigados a fazer ajustes visando à sobrevivência da empresa, e, infelizmente, a partir de hoje teremos que dispensar os seus serviços profissionais.
- Como assim? Estou sendo demitido?
- Sinto muito, meu amigo, mas não há o que fazer.
- Mas por quê? Justo agora nas vésperas do Natal?
- Pois é....a diretoria entendeu que era melhor fazer isso agora, antes das nossas férias coletivas, assim as pessoas que forem demitidas poderão contingenciar melhor as suas poupanças, evitando gastos excessivos com as férias.
Vitor não podia acreditar no que estava ouvindo. Tinha tomado conhecimento das mudanças que estavam para acontecer através da famosa "rádio peão". Ouvira que algumas pessoas mais velhas poderiam ser trocadas por jovens com a metade da experiência, mas como contrapartida com um salário que era de um terço dos veteranos.
Mas justo ele!
Pensou em todas as horas extras, todos os finais de semana longe da família, toda dedicação ao crescimento da empresa, para acabar nisso? Demitido uma semana antes do Natal?
Sentia a alma apertada e um gosto amargo na boca. Gosto de derrota, de perda.
Como ficariam as coisas em casa?
Sua mulher havia largado o emprego de secretaria para cuidar da casa e da família. O salário de gerente da gráfica sempre fora mais que o suficiente para todas as necessidades da casa e das crianças.
Toda a sua poupança fora usada para acabar de pagar o empréstimo da sua casa e o que receberia como quitação trabalhista daria no máximo para pagar as contas pelos próximos seis meses.
E depois disso, como faria?
Quem lhe daria emprego com essa crise e com a sua idade?
Sentando no banco da praça, começa a sentir o corpo formigando e os olhos a pesar.
- Incomodo?
Um senhor de cabelos brancos sentara ao seu lado.
- Desculpe-me a intromissão, mas você está bem?
Vitor nota a suavidade da voz e fica admirado com a vivacidade dos olhos azuis
que pareciam lhe interrogar. Olhos de criança, como o povo costumava falar.
- Estou sim. estou apenas tendo um dia muito ruim. Acabei de ser despedido e estou sem forças para encarar a minha família.
- Enfrentar a sua família? Mas, por quê? Vocês estão brigados?
- Não, imagine! Eu amo a minha mulher e meus filhos. Eles são o meu maior bem, sempre dispostos a me apoiar. É só...jeito de falar, certo? Na verdade me sinto derrotado, sem forças para encará-los. Com receio da reação, entende?
- Ora, se você ama a sua família assim como eles te amam, não acredita que eles serão os primeiros a te apoiar?
- Sim, você tem razão. E que no fundo a gente acaba se sentindo descartável, um velho ultrapassado e sem serventia....
- Mas que absurdo, meu filho! Isso lá é jeito de se pensar? Quantos anos você tem?
- Faço cinquenta anos em janeiro.
- Ora, você é um menino! Eu acabo de completar setenta e sete anos e continuo me sentindo um garoto...
Era muito estranha a sensação que Vitor sentia. Aquele senhor era tão familiar, como um parente ou um amigo distante.
- Perdão, qual é o seu nome mesmo?
- Eu me chamo Leon. E você?
- Vitor, eu me chamo Vitor.
- Sabe, Vitor, ser despedido faz parte da vida de qualquer profissional. É uma situação a que todos estamos sujeitos. Você vai ver que logo aparecerá outro emprego.
- É, mas hoje em dia a situação é diferente. Com cinquenta anos as oportunidades de emprego são quase nulas. Ninguém vai querer me oferecer um emprego.
- Não diga isso, meu rapaz! Como você vai conseguir convencer alguém da sua capacidade se você é o primeiro a se anular?
A simpatia por aquele senhor só aumentava. Vitor não sabia o porquê, mas sentia uma vontade enorme de abrir seu coração para Leon.
- É...mas quanto tempo isso pode levar? Posso não conseguir uma recolocação, e com as coisas no mercado se complicando cada vez mais, posso levar a minha família a uma situação muito difícil. Isso eu não iria suportar....
- Vitor, Vitor. Mas que é isso, meu rapaz! Um profissional com a sua experiência sempre faz falta. Tudo é uma questão de se eleger os alvos corretos, de procurar empresas que precisam da capacidade e conhecimento que as suas qualificações podem trazer. Juventude não é tudo. Como dizem no futebol, existem os jogadores que correm a partida inteira e existem os jogadores que já sabem aonde a bola vai, não é?
O exemplo conseguiu arrancar o primeiro sorriso de Vitor.
- Você tem razão, mas tenho muito medo do que possa ser o meu futuro e o da minha família.
- Deixe lhe dizer uma coisa, Vitor. Na vida existem três tempos; passado, presente e futuro. O passado é como o retrovisor de um carro. Se você dirigir a sua vida olhando pelo retrovisor, não irá enxergar nada à sua frente, podendo provocar um grave acidente. Lembre-se, o passado jamais pode ser mudado.
O futuro ainda não aconteceu e sempre dependerá das atitudes que tomarmos no presente.
Sabe por que presente tem esse nome, Vitor?
- Porque esse tempo foi o verdadeiro presente de Deus. É o período do livre arbítrio, o período em que a vida acontece com todo o seu esplendor. O presente é a única etapa da nossa existência que podemos interferir, mudar o resultado, preparar o futuro escolhido.
Se você utiliza o presente para remoer e lamentar todos os erros do passado, além de não viver todas as possibilidades do seu presente, acaba condenando o seu futuro.
Traga do seu passado apenas as experiências que irão ajudá-lo - no presente - a construir bons alicerces para o seu futuro.
E nunca, nunca mesmo se esqueça que quem tem medo do futuro deixa de aproveitar a dádiva ofertada por Deus, o presente.
Vitor já ia respondendo quando repentinamente se dá conta que estava sozinho no banco.
O que aconteceu? Adormecera? Tudo seria um sonho seu?
Mas não era possível...Leon parecia tão real, tão presente. Como poderia ter sido um sonho, ainda mais com uma pessoa com um nome tão estranho, Leon?
Um flash atravessa o seu pensamento. É claro! Lembrou-se das brincadeiras de criança, dos anagramas. É isso, Leon visto pelo espelho - Noel!
Loucura? Maluquice?
Lembrou da sua mãe a lhe dizer - "...filho, as respostas as nossas dúvidas estão quase sempre dentro de nós mesmo, basta querer escutá-las".
As suas angústias, aproveitando o momento do fim de ano, teriam personificado a sua voz interior, a sua consciência, na figura do velho Noel?
Sua auto-análise é interrompida por uma pequena mãozinha a lhe cutucar o joelho.
Abrindo os olhos, Vitor vê uma menininha linda a lhe oferecer uma flor que pegara no jardim da praça.
-É pra você, tio. Não fica triste, tá!
Um pouco mais adiante a mãe da menina chamava por ela.
- Vem filha, para de incomodar o moço.
Vitor apanha a flor da mão da menina e pergunta.
- Que linda flor, menina linda!Obrigado! Como você se chama?
- Esperança, tio. Eu me chamo Esperança.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Carta ao meu pai

Celso Pinheiro de Oliveira

Oi, pai. Tudo bem?
Você deve estar estranhando eu escrever essa carta após mais de cinquenta anos da sua partida.
Mas, como todos dizem, o tempo por aí não guarda a mesma relação que o nosso, então, talvez tenham se passado apenas alguns dias, não é?
Hoje é o Dia dos Pais e resolvi transformar em carta tudo aquilo que sempre pensei em te dizer.
Como você bem sabe, eu era praticamente um bebê quando você se foi.
Não vou negar que foi muito difícil preencher o vazio que ficou. A sensação da falta, a ausência, acompanhou-me grande parte da vida. Aquela coisa de olhar para o lado é sempre haver uma cadeira vaga.
Dias como o de hoje eram como um punhal a cutucar minha alma.
As crianças na sala de aula preparando os seus "bilhetinhos para os papais" como a professora chamava, a corrida das mães e seus filhos pelas lojas a escolher os presentes que seriam dados, a espera pela hora de correr ao encontro do pai para os abraços e beijos... Todas essas coisas pareciam fazer parte de um mundo que não era meu.
Quantas noites eu não passei a perguntar por que não podia tê-lo ao meu lado.
Quantas vezes eu não me peguei a perguntar-lhe se estava sendo o filho que você esperava.
Você me ouvia, pai?
Acho que sim. De certa maneira sempre sentia a sua presença a me responder.
Mas, sabe pai, hoje eu queria mesmo é te agradecer.
Você soube escolher muito bem a mulher e a família que iria gerar e cuidar do seu filho. Uma família de mulheres fortes, guerreiras e amorosas, que foram fundamentais na formação do meu caráter, no modo em que eu viria a encarar a vida e os meus sentimentos.
A sua mulher, minha querida mãe, sempre foi o meu exemplo e a minha guia. Ela, como ninguém, foi a demonstração clara e viva de como devemos encarar e superar as dificuldades que a vida nos apresenta. Amor, suavidade e determinação.
E como deve ter sido difícil se dividir na dupla função de pai e mãe. O coração sempre se dividindo entre a necessidade de ensinar e a vontade de abraçar e confortar.
Ter que trabalhar fora doze horas por dia para prover o sustento da família e as atividades de mãe e dona de casa.
Claro que lá estava também a minha doce tia, que professora como minha mãe, alternava com ela os trabalhos como nossa segunda mãe.
Os ensinamentos, as rezas, as lições corrigidas e todo o carinho do mundo para nossas horas de tristeza e inquietações.
E para as situações em que a referência masculina era imprescindível, lá estava o meu tio a conduzir as ações, seja para ensinar a jogar futebol ou para ensinar como agir quando alguma menina nos tocava o coração.
Mas, pai, sabe quando realmente tudo mudou?
Quando fui abençoado pela chegada das suas netas.
Com elas a tristeza se foi. Conseguiram transformar uma data de ausência em um dia da mais absoluta felicidade e amor.
Hoje é esse dia.
O café na cama, os abraços e beijos e a alegria de estarmos juntos.
A felicidade de poder cumprir uma missão que você não teve tempo de vivenciar.
O seu filho, pai, é um homem realizado, muito feliz, mas muito feliz mesmo.
Sei que daí de cima você deve estar feliz também. De alguma maneira sinto que pude contar com você em muitas das minhas decisões e caminhos.
Agora sei que a sua presença sempre esteve nos detalhes, na minha parte que era a sua parte.
Sei que a maior felicidade que um pai pode aspirar e ver o seu filho feliz.
Pai, feliz Dia dos Pais para você e obrigado por tudo.
Beijo grande e até o nosso encontro.

PS. Já que escrevi, não custa perguntar: pai, eu estou sendo o filho que você esperava?

quinta-feira, 10 de março de 2011

Gosto Amargo

Celso Pinheiro de Oliveira


Marta abriu a porta do escritório de Luiz Carlos e ganhou a rua.
Sentia a boca amarga. O coração ainda galopava em seu peito como se procurasse desesperadamente uma saída do corpo.
As pessoas na calçada pareciam estar em outra dimensão. Não faziam parte do mesmo espaço que ela ocupava.

Caminhou em direção ao carro sem saber exatamente o que fazer. Seu pensamento não se alinhava com o turbilhão de seus sentimentos. Era como se outra pessoa houvesse saído daquele escritório. Uma pessoa que Marta jamais havia conhecido.
Esforça-se para buscar uma lógica, uma postura equilibrada para justificar a loucura que havia cometido.

Entrara como um furacão sala adentro de Luiz Carlos e, após meia dúzia de palavras trocadas, haviam se amado com uma fúria animalesca, como se o resto do mundo não existisse, um hiato mágico do tempo.

Ainda sentia em seu corpo todos os beijos e carícias recebidas. O perfume de Luiz Carlos continuava em sua pele, como se quisesse perpetuar a memória dos momentos passados. Por mais estranho que isso pudesse parecer, não conseguia achar sentido para tudo que ocorrera. Era como se um imenso vazio tivesse tomado conta do seu corpo e das suas emoções.

Claro, sempre soubera do interesse de Luiz Carlos por ela. Elogios, olhares a distância, gestos de carinho, tudo dentro do protocolo que a sua situação de mulher casada exigia e da própria distância que Marta estabelecia.

Sergio, seu marido, era dono de uma galeria de arte e Luiz Carlos seu mais assíduo cliente. Apesar de todos os gestos e atitudes, Luiz Carlos jamais havia ultrapassado os limites da boa conduta e educação. Era como se o flerte fizesse parte do seu próprio personagem.

Para Marta, aquilo tudo sempre fora uma brincadeira. Momentos que ela intitulava de SPA do ego, daquela sempre agradável sensação de se sentir desejada. Nunca havia dado espaço para qualquer aproximação maior.
Então, porque isso?

Seu amor por Sergio sempre fora absoluto. Uma paixão instantânea, ao primeiro olhar, ao primeiro toque.
Do beijo ao casamento apenas um ano. Dois anos depois chegava a filha Clara, fortalecendo ainda mais a relação e felicidade dos dois.
Mesmo existindo momentos de discussões, de baixas no relacionamento como em qualquer casal, a confiança e o amor por Sergio nunca foram questionados.

Sabia que Sergio a amava da mesma forma e que a relação entre eles era forte o suficiente para afastar qualquer intromissão que colocasse em risco essa união.
Então, o que havia acontecido? O que mudara?

As suas certezas haviam sido destruídas na semana anterior. Perdera o chão e o buraco que se abrira aos seus pés havia carregado as suas mais arraigadas convicções.

Abre a porta do carro, senta-se e joga a bolsa no banco do carona.
Imóvel, tenta de todas as maneiras segurar a lágrima que teimosamente insistia em cair. Desiste da luta e começa a chorar aos soluços.

Fora na quarta feira. O trânsito havia feito com que ela perdesse a hora do dentista e decidisse voltar mais cedo para casa.
Na garagem, como estava com o carro cheio de compras, subiu pelo elevador de serviço.
Já na copa de casa, escutou a voz de Sergio que conversava com alguém na sala.

Sem saber exatamente porque, resolveu não delatar a sua presença e escutar a conversa. Logo percebeu que a voz da pessoa que estava com o seu marido era do Vinícius, seu assistente direto na galeria.

- Olha lá, Vinicius. Amanhã você inventa um compromisso, pega a Aline e a leva até o flat, ok?. A voz de Sergio deixava claro o sentido da ordem.

- Deixa comigo, chefe. Vou deixar a Aline lá, na hora de sempre.

- Tenho um cliente para receber na galeria, mas até umas 16h00min eu já me livrei dele e vou para o flat. E veja se antes de sair da galeria faz uma ceninha, dá as mãos, um abraço na Aline na frente do pessoal. Eles têm que acreditar que vocês estão mesmo namorando. Mas não abusa, certo?

- Que isso, Sergio. Você não confia em mim?

- Cara, eu não confio nem na minha sombra. Você sabe que se a Marta desconfiar de alguma coisa é o fim.

- Não esquenta a cabeça. Se ela não desconfiou de nada nesses seis meses, não vai ser agora, não é?

- Como dizia minha avó, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém! Sergio completou a frase e caiu na gargalhada, acompanhado por seu cúmplice.

Marta, do outro lado da porta, não podia acreditar no que tinha ouvido. As suas pernas pareciam te-la abandonado. Deslizou seu corpo pelos azulejos da parede até ficar de cócoras.

Então, aquela era a função daquela pilantra na galeria? Amante do seu marido!
Desde o primeiro dia de trabalho de Aline na galeria, Marta não havia simpatizado com ela.
Alguma coisa no jeito de falar, de se vestir, de se relacionar com as pessoas, havia acendido a luz vermelha no painel de Marta.
Era como se pressentisse o perigo eminente.
Só relaxara a marcação e vigilância após saber que ela era a nova namorada de Vinícius.

Mas, agora isso? Tudo uma grande encenação para enganá-la?

A raiva tomou conta das suas emoções. A sua vontade era entrar naquela sala e arrancar os olhos daqueles dois. Trazer a dor para aqueles canalhas, na vã tentativa de acalmar o sofrimento do seu espírito.
Num esforço tremendo, busca a porta da cozinha e sai de casa.

- Alô, Jackie?

- Oi, Marta. Tudo bem? Você está com a voz tão estranha?

- Jackie, estou mal... Preciso muito conversar com você. Posso dar um pulo aí?

Jackie - Jaqueline - era a melhor amiga de Marta desde os tempos de colégio. Ao perceber o desespero da amiga, desistiu da ida ao shopping e confirmou a conversa.

- Claro, meu bem. Pode vir sim, estou a sua espera.

Ao entrar no apartamento da amiga, Marta pula em seus braços, sem conseguir controlar o pranto.
Após colocá-la no sofá e trazer um copo de água com açúcar, Jaqueline escuta pacientemente toda a história da amiga.

- Mas como o Sérgio pode fazer isso comigo? Como pode destruir tudo aquilo que construímos? Nosso amor, nossa filha, nossa casa? Então era isso o tempo todo? Mentiras, enganações, traições? Nada era verdadeiro?

- Calma, Marta. Beba mais um pouco de água. Respire fundo ... assim você vai ter um "treco"!

- Como posso me acalmar, se tudo aquilo que eu sempre acreditei não passa de uma tremenda mentira. Será que o amor dele era tão pequeno, a ponto de arriscar tudo em uma relação com uma pivetinha mal saída das fraldas? E mais, será que ela foi a primeira?

- Ora, Marta! Você bem sabe como são os homens, principalmente os que chegam à idade do Sergio. Buscam relacionamentos com meninas mais novas, como se com isso conseguissem parar o tempo, numa tentativa desesperada de permanecerem jovens e poderosos, os garanhões da manada. Não conseguem lidar com o avanço da idade e com as mudanças que isso acaba trazendo.

- O que você quer dizer com isso? Que preciso aceitar isso como fazendo parte integrante de um relacionamento, fingir que nada acontece?
Jackie, por acaso a idade não chega para nós? Também não temos que aceitar as mudanças em nossos corpos e nossos hormônios? Segurar as nossas inseguranças e, principalmente, dar suporte as inseguranças deles? Se buscar relacionamentos com pessoas mais jovens é a terapia masculina contra a crise da idade, por acaso devemos buscar um tratamento igual? Sair à procura de outros homens que nos façam sentir mais jovens?

- Minha amiga, você sabe que não somos feitas do mesmo barro que eles. Não temos a capacidade de viver de subterfúgios e mentiras, pelo menos as mais conscientes. Mas conheço muitas mulheres que agem da mesma forma que os homens. Algumas para dar o troco, outras porque acabaram transformando o seu casamento em um acordo de interesses comuns. Eu particularmente acho isso uma grande bobagem. O risco de sair de um relacionamento desses mais machucada do que entrou é sempre muito grande.

- A minha vontade é fazê-lo passar pelo o que estou passando. Quero que ele sinta a mesma dor que eu estou sentindo.

- Minha querida, eu sou a pessoa que mais te conhece no mundo. Pense bem antes de tomar qualquer decisão. Cabeça quente nunca é boa conselheira. Procure se acalmar e pesar todas as suas atitudes futuras. A vingança pode trazer muito mais prejuízo para você do que para ele.

Duas semanas se passaram da conversa com Jaqueline, período em que Marta mal trocara duas palavras com Sergio. Parecia que quanto mais evitava seu marido, mais Sergio a procurava, cercando-a de mimos e atenções. A noite, na cama, a distância que Marta colocava entre os dois era abissal. Questionada sobre o que estava acontecendo, dores de cabeça ou alguma indisposição era a resposta. Marta sabia que se entrasse em discussão a colisão seria inevitável. Precisava se guardar, precisava de tempo para tomar uma decisão correta. Mais que toda uma relação em jogo, havia Clara, uma filha que adorava o pai. Uma pessoinha inocente e que certamente seria a maior prejudicada em toda essa história.

Mas, as coisas acabaram se precipitando naquela noite, quando Sergio informou que, no dia seguinte, chegaria um pouco mais tarde para o jantar. Receberia na galeria, no fim da tarde, um cliente de fora e talvez esticasse para um happy hour.

Sem nenhuma manifestação, Marta continuou passivamente a leitura do seu livro, enquanto os pensamentos e as emoções varriam seu cérebro como um tsunami.

No dia seguinte, perto das 17h00min, de um telefone público e com a voz disfarçada, liga para a galeria.

- Galeria D'Arte, boa tarde!

- Ah, boa tarde. Por favor, eu queria falar com a Aline. É a Bruna, uma amiga dela.

_ A Aline não está, teve um compromisso e saiu mais cedo. Gostaria de deixar algum recado?

- Não, eu falo com ela amanhã, obrigado.

A confirmação das suas suspeitas atravessa o peito de Marta como uma adaga. Aguarda uns momentos para se acalmar e retorna para casa. A expressão de seu rosto denotava que a decisão estava tomada.

A buzina de um motorista impaciente traz Marta de volta a realidade. A noite chegara e ela nem se dera conta.

Já estava atrasada para buscar Clara na escola e precisava se recompor rapidamente.
Abaixa o espelho do carro para refazer a maquilagem e olha para a imagem refletida. Não se reconhece, era uma outra pessoa. A frase de Jackie parecia ecoar em seus ouvidos "...a vingança pode trazer muito mais prejuízo para você do que para ele!".
Oh, minha amiga! Como você tinha razão.
A sensação que sentia era de ter feito uma grande bobagem. Fizera uso de uma arma que não sabia manejar. O gosto da vingança era por demais amargo. Não havia um sentimento de vitória, pelo contrário, parecia que a atitude que havia tomado a tinha rebaixado a um nível ainda mais baixo que o de Sergio. Sentia-se agredida duplamente. Sergio havia conseguido violentá-la por duas vezes, espírito e corpo.

Dando a partida no carro, segue em busca da filha. O importante agora era a Clara e havia muito que conversar.