segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Clarear

Celso Pinheiro de Oliveira


Seus pés caminhando a beira mar provocavam um rastro de espuma branca na água fria da manhã.
O dia começava a nascer e o sol recém despertado tingia de dourado cada pedaço da praia.
Pequenos pássaros pernaltas aproveitavam a solidão daquela hora matinal para escarafunchar a areia em busca do alimento diário.
Para Clara aquela era a hora mais bonita do dia. A música dos pássaros e das ondas do mar fornecia a trilha perfeita para o encadear dos seus pensamentos, naquele primeiro dia de um novo ano.
Clara não havia conseguido dormir. Na verdade nem tentara.
Havia esperado que todos da casa buscassem o refúgio dos seus quartos, exaustos após horas de comemorações, comidas e bebidas a valer. Precisava estar só com seus sentimentos, só com as suas indagações.
Fora um ano muito complicado. As coisas foram acontecendo com uma intensidade e rapidez alucinantes.
Ela fora envolvida e arrastada como se um gigantesco tsunami a tivesse alcançado. Não houvera espaço para o raciocínio ou reflexão. Para cada situação uma resposta e ação automática, apenas para manter a cabeça “fora da água”, respirando quando possível.
A sensação de imobilidade era uma tortura para Clara. Sempre a frente dos fatos no comando da sua vida, manter as rédeas sob controle apertado era seu modo de agir. Tudo previsível e ajustado, sem surpresas.
Mas então, o chão “sumira” sob seus pés. Passara o ano inteiro à deriva, na espera de enxergar um pedaço de terra conhecida que a salvasse.
O tsunami que havia lhe arrastado em janeiro, somente em dezembro lhe devolvera a praia.
Acordara naquele réveillon como uma completa estranha. O chacoalhar dos meses havia embaralhado todas as suas certezas.
A mulher que, na noite anterior, havia jogado as suas oferendas para Iemanjá, pulado as sete ondinhas e passado por
todo o ritual de final de ano, da lentilha a folha de louro na carteira, era a Clara que ela conhecia, mas não a que ela parecia ter se tornado.
Qual o sentido em passar por todas as provações que a vida lhe trouxera naquele ano?
Uma picada em seu pé a trás de volta a praia. Uma pequena rosa trazida pela maré. Uma das tantas oferecidas na esperança que, por um passe de mágica, no espaço de tempo entre a noite e um amanhecer, tudo se transformasse para melhor na vida das pessoas.
Será que elas realmente acreditavam nisso? Que a passagem de ano fosse suficientemente forte para zerar todos os erros cometidos no ano que terminara, que todas as dívidas estariam perdoadas e, ao acordarem no novo ano, os ventos da boa sorte iriam soprar as velas dos seus barcos?
Clara senta-se na areia para observar o mar.
Ao seu lado, um pequeno caranguejo abandona a segurança do buraco na areia, e caminha com um andar enviesado em sua direção. Ao chegar perto para e passa a observá-la como se estivesse avaliando o perigo a ser enfrentado. Clara faz um pequeno gesto, o suficiente para que o caranguejo corresse de volta para o seu canto.
Os seres humanos, assim como aquele caranguejo, são parecidos pensa Clara. Ao menor sinal de perigo ou ameaça, buscam a segurança das suas casas.
O pensamento liga uma chave no cérebro de Clara. Uma chave que havia se desligado como se fosse um disjuntor em uma caixa de luz ao perceber a sobretensão do circuito.
É isso.....Ela havia passado por duras provas mas sobrevivera a todas. Estava ela ali, forte, inteira, novamente senhora das suas ações.
Para isso servem as provas, para nos ensinar, nos fortalecer para novas e necessárias experiências.
A vida é como uma grande escola se quisermos evoluir, “passar de ano”, as provas são fundamentais como medidoras da nossa capacidade de poder seguir por novos caminhos.
Clara levanta-se tomada de uma nova energia. Compreende que o manual de explicações da vida não está disponível nas bancas, que deve ser escrito por cada ser humano, contabilizando cada uma das experiências,boas ou más.
A evolução é uma coisa que deve ser buscada, não vem trazida pelas ondas do mar sob a forma de desejos de fim de ano.
Clara caminha em direção do mar e mergulha na primeira boa onda que passou.Ao emergir, a água que escorria pelo seu corpo parecia levar junto todas as suas amarras, suas aflições.
Clara finalmente entendera que não é a vida que muda, nós é que devemos mudar a vida dentro da gente.



quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Carta para os amigos do passado



Hoje, não sei se pela proximidade do Natal ou pela renovação das esperanças de um Novo Ano, resolvi escrever uma carta
para todos os amigos que a vida me apresentou e que nunca mais vi.
Sentei-me em meu canto favorito para dar início aos trabalhos. Nada de papel e lápis, nada da chamada tecnologia das comunicações eletrônicas.
Coloquei o DVD das minhas memórias, dei um retrocesso e voltei lá para trás, bem no começo de tudo.
Do primeiro amiguinho do primário, aquele que vivia trocando seu lanche comigo por gostar mais do que a minha mãe preparava. Claro, no meu tinha queijo e no dele só margarina. Mas isso não tinha a menor importância.
O que valia mesmo eram aqueles minutos de cumplicidade, em que a risada surgia à toa, a cada bobagem dita.
E o Walter então? Um dos primeiros amiguinhos a ganhar uma bicicleta de “gente grande”, sem as duas rodinhas extras, coisa que a minha total incapacidade de pedalar não me deixava fazer com a minha bicicleta jamais.
Os amigos dos primeiros jogos de futebol no campinho do “terreno das placas”, que havia sido batizado com esse nome por ser cercado pelas placas de publicidade, os chamados out-doors.
E do ruivinho do apartamento 42?
Mais conhecido como Foguinho, conseguia “roubar” sempre uma Playboy do irmão mais velho, que folheávamos ávidos enquanto as nossas mãos procuravam os bolsos de nossas calças, na tentativa de acalmar o “nosso amiguinho”, que só
encontraria sossego na intimidade do banheiro de cada um.
No ginásio, havia sempre aquele amigo especialista no domínio da matemática e física, que na carteira da frente, sabia como colocar o corpo de lado, deixando-nos “colar” as respostas dos exames. Às vezes a “colada” era tão absoluta que corríamos o risco de copiar até o nome do amigo na nossa própria prova.
Os amigos dos primeiros bailinhos, sempre dispostos a percorrer todas as ruas do bairro em busca da festa da vez.
Especialistas em traçar linhas de parentesco com os donos da casa, sempre davam um jeito de liberar a entrada para a
turma toda.
E o Joca? Filho da dona do nosso boteco preferido, dono de uma alma maior que o bolso.
Apesar de estar mais para troco do que para graúdo, sempre que tinha um dinheirinho na mão, fazia questão de compartilhar como os amigos. Grande exemplo de que para se divertir e ser feliz não é preciso ter dinheiro e sim espírito.
Na faculdade os companheiros já eram aqueles que nos acompanhariam na vida profissional. Alguns até foram, outros acabaram seguindo profissões distintas e sumiram por rumos desconhecidos.
Como minha proposta era escrever uma carta para os amigos que sumiram, não me preocupei em lembrar dos amigos presentes até hoje em minha vida. Aqueles a quem chamo, com a mais perene sinceridade e devoção, de irmãos que o destino me deu.
Esses sim estão ao meu lado, dispostos sempre a me oferecer um porto seguro, uma felicidade e um encantamento que só quem conhece o verdadeiro sentido da irmandade pode compreender.
Mas se todos esses que eu citei foram lembrados nessa minha carta mental, porque desapareceram?
Porque não continuaram na mesma estrada que eu segui?
A resposta a essas indagações, a minha voz interior não tarda a esclarecer.
Por que na vida, cada momento tem a sua hora exata para acontecer. A importância justa para fazer a transformação necessária para a construção da pessoa que você irá se tornar.
Como na escola, cada matéria deve ser ensinada na época exata em que o aprendizado será mais efetivo.
Assim como existe o tempo de semear e colher, as amizades sempre aparecem na hora em que a terra está mais propícia para a planta germinar.
A nossa vida é um imenso quebra cabeças. A soma de todas as peças é necessária para o entendimento da imagem. Uma pecinha que você retirar já vai ser suficiente para torná-lo inútil.
Portanto, mesmo que esses meus amigos tenham sumido nas brumas do tempo, quero agradecer a cada um deles por terem ajudado a montar o quebra cabeças da minha existência.
Amigos, cada um de vocês fez o todo que hoje sou.
Onde estiverem recebam um grande beijo meu e que a vida também lhes reserve amigos tão importantes como vocês foram na minha vida.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Um lado da sombra


Ilda Simonetti

Eles namoraram quatro anos, entre namoro e noivado. Dois de namoro e dois de noivado, na verdade; era de se esperar que se conhecessem bem, e se conheciam.
Na primeira vez em que saíram, foram ao cinema, e depois jantaram num restaurante bonito e charmoso, coisa que ela não estava acostumada, afinal tinha apenas 22 anos, e até então só havia namorado estudantes de 24 ou 25 anos, que não podiam proporcionar a ela esse tipo de encontro. Além disso, ele tinha carro! Zero quilômetro, um DKV verde claro, com cheirinho de novo, e era gerente de vendas em uma multinacional famosa...
Durante o jantar, em meio a inebriante felicidade dela, ele lhe disse que não queria começar esse relacionamento com uma mentira, e lhe contou que era casado, estava se desquitando, na verdade naquele tempo não havia divórcio, estivera casado durante dois anos, não havia nenhum filho, a esposa o havia deixado por outra mulher, ele não fora o melhor dos maridos, confessou, mas aprendera com o erro, e pediu a ela que não contasse aos pais dela.
" Eu vou à sua casa, disse ele, eles ficam me conhecendo e, quando me conhecerem, se gostarem de mim, vai ser mais fácil me aceitarem como genro. Se contarmos agora, sem que me conheçam, já vão estar predispostos a proibir o namoro".
Ele estava certíssimo. Ela estava maravilhada! Na verdade, não chegara a sentir por ele nada ainda, apesar de achá-lo atraente, mas ele era um homem! Até então só conhecera meninos, ele era experiente, tinha quase seis anos a mais do que ela, e tinha um carro! Um carro novo e bonito, naquele tempo só pessoas mais velhas tinham carro, e nem eram tantas, e os carros eram de modelos mais convencionais l, ele estava realmente parecendo um Príncipe Encantado... Naquela noite, ela dormiu feliz.
Como combinado, na outra semana ele foi a casa dela conhecer os pais, e começaram a sair juntos, ainda sem nada formal, só estavam namorando, se conhecendo, e, como ele previra, os pais dela gostaram muito dele, ele era encantador, inteligente, parecia que tinha um futuro, e tudo corria às mil maravilhas, até que depois de três meses ele veio a casa dela para o encontro semanal e, parecendo bastante chateado, disse a ela que a ex o havia procurado, queria voltar, estava até ameaçando se matar, por isso ele ia dar mais uma chance a ela, puxa, que chato, mas o que ele poderia fazer?
Ela ficou arrasada, mas se fosse assim, se não tivessem futuro, era melhor partir pra outra, não é verdade? E assim foi feito. Mas quem disse que ela se contentaria agora com coisa menor do que o que ele oferecera? Para ela, o fato dele ter sido casado o tornava um marido perfeito, ele já havia experimentado, não dera certo, estava claro que ele só poderia ser agora, um excelente marido, com certeza havia aprendido a lição...
Era carnaval, ela viajou com a irmã mais nova para Santos, mas a irmã era sete anos mais nova, a turma só tinha gente adolescente, eram quase crianças, que saco!
Terminado o carnaval, uns dias depois, eis que ele telefona pra ela dizendo que não havia dado certo a volta com a ex esposa, e que, se ela quisesse, ele agora iria formalmente fazer aos pais dela o pedido oficial de um relacionamento sério, costume daqueles tempos...
Dito e feito, ela feliz, os pais felizes, só que a partir daquele momento, a partir daquele exato momento, quando o namoro ficou oficializado, tudo mudou, não só mudou como mudou muito, mudou da água para o vinho, o que antes era um relacionamento prazeroso, cheio de brincadeiras, se tornou um relacionamento sério, ele não brincava mais, se ela brincava, ele não reagia mais como antes, de relacionamento só tinha o nome, porque ele e ela realmente não se relacionavam, saiam juntos, quase não havia conversa, ele não falava, se ela falava, ele mal respondia. Havia  se transformado quase num sacrifício saírem juntos, mas ... ela havia se condicionado a achar que tinha que ser ele, já estava apaixonada, e apesar de achar que não era correspondida não estava disposta a abrir mão daquilo, ah, não, seria muito difícil encontrar alguém igual... puxa, ela nem sabia o quanto estava certa, outro igual com certeza ela não acharia, puxa se ela ao menos tivesse quem a aconselhasse, mas escutaria ela alguém que fosse contrário ao que ela queria? Quanta imaturidade... será que era o destino forçando aquela relação, ou ela teria tido a chance de ser feliz com outro alguém se ela tentasse? Isso ela não sabe, e nunca saberá.
Eles arrastaram esse namoro por dois anos, e quando ele propôs ficarem noivos ela aceitou! Sabem o que ela pensou? Agora ele não conversa comigo, mal me olha, mas no dia a dia, quando morarmos juntos, ele vai ser obrigado a conversar comigo, afinal moraremos juntos só nós dois, é claro que teremos que conversar, aí tudo se resolverá! Até que havia chance disso acontecer, mas um observador mais atento teria percebido os sinais... aquilo não daria certo nunca... ele não perdia ocasião de brigar com ela pelo mais bobo dos motivos, o que a deixava completamente confusa... ele encontrava motivos para brigar por coisas tão insignificantes para ela que a deixavam desarmada, nem argumentos ela encontrava para se defender, era tudo tão absurdo... por que ele estaria com ela, ela se perguntava constantemente? Porque era uma moça de boa família, e iria dar uma boa esposa? A família dele a adorava devia ser por aí, ela já havia até tentado, no desespero, dizer a ele que achava que ele não a amava- e ele dissera a ela, curto e grosso; “então se faça ser amada”! Deus, nem isso fez com que ela tomasse qualquer iniciativa, ela estava se tornando um capacho dele, estava nessa prévia do casamento lançando a base para o futuro que a esperava, onde ela seria humilhada, e nunca, jamais, respeitada, mas que graça ele acharia em uma esposa assim? Como ele poderia respeitar uma esposa assim?
Perguntas nunca respondidas... só o que ela soube, muitos anos depois, quando já casados e separados, ambos em idade avançada, foi que ele a amara, sim, e a achava tão bonita que só a esmagando, só a humilhando, é que conseguira se sentir seguro, e mantê-la no cabresto, expressão que a mãe dele gostava de usar.
Bem, mas o noivado se arrastou, o casamento foi marcado. Por ele ser desquitado a saida para o casamento foi arrumar igreja no cafundó do Judas que aceitava fazer esse tipo de casamento. É claro que, a esta altura, os pais dela já haviam sido notificados sobre a situação civil dele e, conforme esperado, receberam bem a noticia. Será que esses pais achavam que o namoro deles ia bem? Não percebiam o que se passava? Ela, imatura e completamente boba, sempre se esforçou para parecer feliz, não me perguntem por que. Apenas um dia o avô dela lhe perguntou se era isso mesmo o que ela queria, se ela era feliz, e ela se apressou a dizer que sim, claro, estava tudo maravilhoso e ela era felicíssima!
E assim as coisas foram se encaminhando para o mais completo desastre. Ele não perdia a chance de humilhá-la lhe contando das moças que estavam apaixonadas por ele, em todos os detalhes – e ela permitia- dizia a ela que amigos perguntavam se ela era mais velha do que ele- afinal ela já estava cheia de rugas em volta dos olhos ?????????- e ela aceitava- meu Deus, ela não tinha o menor amor próprio, a esta altura qualquer pessoa diria que ela era tão idiota que merecia o pior tipo de tratamento- ela concordaria- mas ainda não entendia por que ele queria se casar com ela.
Com casamento se aproximando, ele comprou uma casa em final de construção, bonitinha, ela adorou, e fez uma grande parte do enxoval, comprou muitas coisas, é claro, mas bordou toalhas e centros de mesa, pintou toalhas de banho, fez jogos americanos, fez cinco almofadas muito bonitas, e difíceis de fazer, mas ficaram lindas... o sofá que eles haviam comprado era branco, e ela fez as almofadas nas cores da moda de então... ah, quem viveu os anos 60 sabe que roxo batata, verde limão, azul turquesa, rosa choque e amarelo ouro eram as cores que moviam a moda, que girava em torno delas e, no sofá imaculadamente branco, ela colocou as almofadas redondas que ela tinha feito em cada uma dessas cores, e ficou realmente bonito!
Depois do casamento, da lua de mel, quando eles se mudaram para a casa, ela a arrumou e ficou tudo lindo! Se ele reparou, ninguém nunca soube... Bem, se casaram e sairam de carro para uma viagem até a Argentina, passando pelo sul do Brasil, uma viagem linda, na verdade, e até chegarem ao Uruguai até que tudo correu bem, conversavam, brincavam, mas... acontece que do Uruguai eles iam tomar um barco até Buenos Aires, e alguém teria que pegar o carro dele – era dele, nunca deles, ele sempre disse dele- e levá-lo de volta pra São Paulo, e assim ficou combinado que o irmão dele, a cunhada, e o sobrinho iriam se encontrar com eles lá no sul para fazer justamente isso. E aí aconteceu uma coisa realmente interessante: a viagem que vinha vindo tão bem azedou! Foi só chegarem as pessoas da família dele que ele começou a brigar com ela de novo, por qualquer motivo, e às vezes até mesmo sem nenhum- e a vida dela se tornou miserável outra vez. Ele e o sobrinho, um rapaz por volta de 17 anos, flertavam com outras garotas, comentavam sobre elas, tudo de maneira discreta, é claro, mas de maneira alguma despercebida, e ela, não gostando, disse a ele, e até ficou de cara virada, o que vocês pensam? Mas não adiantou nada, de fato. Ficaram alguns dias no Uruguai e, apesar de tudo, ela adorou Montevidéu,
Então, os parentes voltaram para o Brasil, eles pegaram o barco para Buenos Aires, e novamente ficou tudo bem, até chegarem a Buenos Aires, onde a irmã dele estava em um hotel com os três filhos, hotel onde os recém casados se instalaram, nos aposentos ocupados pela irmã e sobrinhos. Lua de mel cheia de parentes hem! Ah, tudo tão diferente... mas não do modo bom, se é que vocês me entendem... puxa vida, quem adivinha o que aconteceu? Hem? Hem? Ele começou a brigar com ela e dessa vez não teve como ele arrumar motivo, mesmo assim virou a cara e, pasmem- dormiu em um quarto separado. Ela com a maior cara de tacho, ainda mais que nem motivo para explicar aos outros ela tinha, a bestalhona, que se achava no dever de dar explicações, quando tinha era o direito de recebê-las!
Enfim, de Buenos eles pegaram um avião para Bariloche. Ah, estava me esquecendo de dizer, foi só saírem do hotel com os parentes que ele ficou de novo amiguinho dela, tão fofo!
Aí foi só felicidade, pegaram um navio de volta para o Brasil, fizeram amizade com um casal, foi uma viagem muito boa, até eles chegarem a Santos, onde a família dela os estava esperando- e aí a coisa desandou de vez!
A casa que ele havia comprado não estava pronta, ia demorar uns três meses ainda, então eles ficaram no apartamento de uma irmã dele, viúva, eles dormindo na cama da irmã, a irmã no sofá da sala. Ela não sabia cozinhar, afinal trabalhara fora sempre, e a mãe nunca gostara de ninguém na cozinha, dizia que atrapalhava, então ela aproveitou e começou a aprender a cozinhar, a lavar, a passar. Ele ia trabalhar, vinha almoçar, e o tempo que durava de depois do almoço até a hora dele voltar pro trabalho se tornou o pior pesadelo dela. Sentada no sofá ao lado dele, a irmã dele fazia questão, ele mudo, é claro, ela às vezes arriscando uma pergunta ou comentário, com um grunhido como resposta, e a irmã, que a tudo assistia, depois que ele saia dizia a ela o que achava, como que ela permitia uma situação dessas? Ela gostava da cunhada, a cunhada do lado dela, vendo a situação, por que será que ela nunca, pelo menos, ao menos isso, disse à cunhada olha, não vou mais sentar ao lado dele depois do almoço, vou lavar a louça, ou ao armazém comprar alguma coisa, ou me atirar da janela, já que estavam no quarto andar, mas não, punha o sorriso na cara e fazia o que a cunhada achava certo, marido em casa esposa ao lado- sempre fazendo o que os outros queriam, nunca o que ela queria, o que lhe valeu mais tarde uma síndrome do pânico e uma depressão que a acompanhou pelo resto da vida, vale a pena isso, meu Deus?
E assim foram se arrastando os meses, minto, se arrastou quase um mês, até o dia maravilhoso em que não desceu a menstruação dela – ele não tivera um filho com a outra mulher, um filho agora o faria mimá-la, afinal todos os homens mimavam as esposas grávidas, oba!
Ela foi ao médico, que confirmou, e ela ficou esperando que ele fosse buscá-la no médico; se alguém esperou ansiosamente por outro alguém na vida, esse alguém era ela... esperou para dar a notícia e ver a alegria se abrir na face dele. AHAHAHAHA!, desculpe, mas se ele fosse surdo teria havido mais reação, acho eu, e lá foi ela de volta para a casa da cunhada com o coração mais uma vez aprisionado numa decepção enorme... quem sabe mais tarde? A cunhada ficou feliz, todo o mundo ficou feliz, se ele ficou ninguém nunca soube.
A casa ficou pronta, mudaram para lá, ela faxinou e arrumou seu novo e primeiro lar, que ficou realmente lindo, embora tenha sido outra decepção para ela, parecia que ele havia nascido com aquela casa, ele olhava tudo como se já conhecesse, nada era novidade, nada digno de nota nem particularmente bonito, valha-me Deus.
Começaram a rotina na nova casa, e de vez em quando iam a um restaurante próximo à casa deles, e naquele sábado haviam combinado de ir, mas ele, quando chegou a hora, amarrou a cara mais ainda, porque vivia amarrada, diga-se de passagem, se vocês ainda não perceberam, e não se mexia. Ela se aprontou, e vendo que ele não levantava da cadeira, disse: “vamos?” aí ele disse que não estava bem, não estava feliz, estava tudo uma porcaria, não tinha vontade de sair... ? Mas chorava... escondido dele, claro, porque se ele visse ele ficaria muito zangado, não apenas zangado mas muito zangado, então se ele sabia fazia de conta que não, mas eu acho que ele não sabia, e assim foi naquela noite, não saíram, ela chorou escondido, e mais uma noite se passou. Interessante que ela ouviu da boca dele que ele não estava feliz, mas ela teve alguma reação? Perguntou por quê? Disse a ele que precisavam conversar a respeito? Ah, não, de maneira alguma, nem pensar! Por quê? Medo de viver a vida sozinha? Batalhar sozinha com uma criança pequena, sem marido? Ou covardia? Ela nunca saberá, por mais que queira, mas com certeza ela não era uma mulher forte na época, não tinha coragem de ir à luta, como muitas mulheres foram naqueles tempos, e perdeu uma grande chance de começar a gostar de si mesma e se respeitar. Se apenas ela soubesse, como sabe hoje, que aquilo poderia ter mudado toda a vida dela, mas não tomou nenhuma atitude, e a vida dela foi o que foi por causa disso.
Bem, passou-se mais uma semana, e dessa vez eles foram ao restaurante, e ele queria comer camarão e ela queria outra coisa, não se sabe o que, mas camarão não era, e como o dinheiro não era muito eles só podiam pedir um prato e como ela gostava de camarão, foi o que pediram, mas aquele camarão fez mal a ela, e olhem que ela comeu com gosto, não, como ele a acusou, de má vontade e de estar fingindo só pra se vingar dele, ela nunca foi esse tipo de pessoa, ela estava sentindo cólicas terríveis e, estando grávida, temeu pelo bebê, mas ele não acreditou e ficou bravo com ela, nem quando ela estava doente ele a tratava bem... aquela ilusão que ela tinha de que, quando vivessem juntos eles começariam a conversar tinha dado em nada? Que eles não conversavam, ele mal a olhava, numa solidão a dois que pesava, que oprimia? Ela mal conseguia respirar, tamanha era a pressão daquele sentimento... e isso, por mais incrível que possa parecer até a ela, hoje, durou quase vinte anos... como eles agüentaram? Não se sabe. Quando ela pensa naqueles tempos ela não acredita que não tenha reagido, que não tenha dito nada... pois não reagiu e não disse! Algumas vezes se rebelou e tentou dizer, mas ele era muito inflexível e ela não conseguiu mudar nada, Quanto a ele, nunca se saberá. Ela gostaria muito de mudar esta estória, e quando ela pensa no passado, na cabeça dela ela discute com ele, e no pensamento dela faz com que aconteça o que ela queria que tivesse acontecido, mas todo mundo sabe que aconteceu o que aconteceu, e nada mudará isso. Ela só espera, hoje em dia, que  possa perdoar a ele tudo o que ele fez ou deixou de fazer por ela, e pela vida deles, mas, principalmente, que ela possa perdoar a si mesma por ter permitido que tudo aquilo tenha acontecido.







quinta-feira, 10 de maio de 2012

O quadro das almas


Celso Pinheiro de Oliveira



Antonio entra em casa batendo a porta por trás das costas.
Deposita o molho de chaves no prato de estanho espanhol da mesinha do hall e,apesar da escuridão reinante no apartamento, segue em frente sem acender nenhuma luz.
Mania sua desde rapazola, andar pela casa no escuro. Talvez para demonstrar um conhecimento absoluto do ambiente, de cada móvel ou objeto ali presente. Afinal, a casa o abrigara a maior parte da vida.
Casa de seus pais, que com morte dos velhos e a sua separação recente, voltara a ser o seu
porto seguro.
Evita a sala de estar e a cozinha tomando o rumo do escritório.
Nada ali mudara. Tudo estava igual, cada coisa ocupando o mesmo lugar
que o seu pai destinara.
A mesa escura de mogno, a cadeira de couro “craquelado” pelo tempo, as duas cadeiras de espaldar
alto para receber os privilegiados que tinham acesso aquele santuário. Estantes que iam do chão ao teto repletas de livros. Eça de Queiróz, Machado de Assis, Bandeira, Shakespeare, Kafka, Edgar Allan Poe, Scott Fitzgerald, Wilde e Joyce, todos a dividir o espaço com dezenas de autores de livros de direito, uma mescla total de escolas e tendências.
Parecia se ver sentado naquelas cadeiras, com as pernas de guri a balançar sem alcançar o chão, a ouvir o
discurso de seu pai:
- Meu filho, esse é o verdadeiro tesouro do mundo. Por essas estantes escondem-se peças de ouro, diamantes e rubis! É o conhecimento, o pensamento humano vivo em cada linha escrita. O poder que emana dessas obras é imensurável. A mente é um labirinto complexo, cheia de armadilhas e saídas falsas. Os livros são os mapas adequados para ajudar a desvendar todos esses mistérios. Lembre-se sempre disso, meu filho, quando se tornar um advogado como seu pai. Criminalista, é claro!
Coitado do Dr. Carlos Bulhões. Morrera sem ver o filho compartilhar duas de suas paixões – o direito criminal e o amor pelos livros.
Antonio, ou melhor, Dr.Antonio Bulhões, jamais tivera o mesmo amor pelos livros, e, quanto ao direito, havia preferido advogar na área societária, onde as vantagens financeiras eram maiores.
Antonio abre a porta do único móvel que não fazia parte da decoração original. Um prolongamento da estante de apoio que servia para esconder uma pequena geladeira. Apanha o copo, dois cubos de gelo e serve-se de uma generosa dose de uísque.
O círculo estava se fechando! – pensa Antonio – afrouxando a gravata e buscando o conforto da cadeira.
O tremor das mãos denotava o estado de espírito, parceiro constante dos últimos dias. O suor começava a pontilhar a testa e nem o álcool conseguia normalizar o batimento cardíaco.
As coisas haviam fugido do seu controle. A sua falcatrua estava prestes a ser descoberta pelos auditores da multinacional em que trabalhava.
Um plano tão bem engendrado! Apenas duas pessoas envolvidas, ele e o contador da empresa, com garantia de uma boa remuneração paralela.
Um trabalho muito bem planejado, sem margens para erro.
Em cada contrato que a sua empresa realizava com seus parceiros, havia a previsão do adiantamento de uma quantia por parte da empresa solicitante, a título de garantia do acordo. Após a efetivação do negócio, a quantia seria devolvida ao parceiro com os devidos juros de mercado. Como normalmente essas negociações demoravam um tempo grande para serem finalizadas, ele e o contador desviavam as quantias para o mercado de alto risco. Na hora de devolver faziam o resgate da aplicação, devolviam a quantia com os juros normais e embolsavam a diferença.
Limpo, sem problemas, ninguém perdia!
Tudo ia bem até resolverem apostar todas as fichas naquela maldita aplicação de fundos chineses. A coisa desandou e tudo foi por água a baixo.
Os parceiros da empresa começaram a solicitar as devoluções dos adiantamentos e eles sem dinheiro para fazer o reembolso.
Até aquele momento eles haviam conseguido acalmar os mais exaltados, mas com os auditores no calcanhar do contador era questão de horas para que ele abrisse a boca e toda a tramóia fosse desvendada.
-Não coloque todos os ovos na mesma cesta! Era a frase preferida de Daniela, sua ex mulher.
Na verdade a separação de Daniela, o novo casamento dela com Charles, um canadense que a arrastou para o Canadá, levando seu filho Rodrigo na bagagem, foi a conta certa para que a sua vida desandasse. Mulheres, bebidas, gastos além de qualquer limite, fizeram um buraco em suas contas. A jogada das aplicações parecia a solução.
A cabeça de Antonio parecia uma bigorna malhada por um martelo gigante. Cada latejada era como se milhares de agulhas penetrassem em seu cérebro.
Abre a gaveta superior da mesa em busca de um analgésico. Dentro, só encontra o velho três oitão do seu pai. Segura o revólver, sente o peso da arma e imagina para quantas pessoas em sua situação não fora esse
o caminho escolhido para resolver o problema.
Sacudindo a cabeça, como a espantar qualquer idéia estapafúrdia, acaba pousando os olhos sobre o quadro na parede oposta.
Um arrepio percorre a sua coluna. Não era apenas um quadro, era O Quadro!
Durante anos na sua infância aquele quadro fora o responsável por noites e noites de pesadelos.
Uma autêntica hipnose. Quanto mais tentava se afastar do quadro, mais ele tornava-se presente em sua mente de criança.
Era uma imagem perturbadora. Uma visão atormentada de uma alma sem esperança.
Um homem alquebrado, com as roupas em frangalhos, aparecia acuado no canto de uma cela escura. A única luz provinha de uma clarabóia gradeada perto do teto, alta demais para proporcionar qualquer visão externa.
Um monte de jornais a servir de cama e um pedaço de cobertor rasgado eram a única decoração.
Envolvendo a figura do homem, como se estivesse prestes a aprisioná-lo, um rodamoinho repleto de facas, objetos de tortura e rostos de pessoas ensangüentadas. Cores muito escuras em contraste com um vermelho gritante. Os traços do pincel pareciam cortar a tela como navalhadas.
Mas, o mais apavorante de tudo era a expressão do homem. O desespero de seus olhos, como se soubesse que por mais que tentasse fugir seria arrastado por aquela força maligna. Não havia possibilidade de fuga, um caminho sem saída.
Jamais entendera porque seu pai teimara com aquele quadro. Não havia nenhum outro no escritório, só ele. Qualquer tentativa familiar para removê-lo era certeza de aflorar a ira de seu velho.
Fora presente de um antigo cliente seu. Uma pessoa que em um momento de desespero e fúria havia assassinado a facadas a sua mulher e a filha.
Incapacidade mental com total ausência de entendimento, fora a alegação do seu pai nos autos do processo. Vitorioso, havia conseguido que o homem fosse internado em um sanatório ao invés de cumprir pena no sistema prisional.
Por uma ou duas vezes seu pai fora visitá-lo no manicômio. Na última vez ganhara o quadro.

- É pra você, doutor. Quando era moleque meu sonho era ser pintor, mas tudo que consegui na vida foi pintar muros e paredes das casas dos meus fregueses.
Agora estou aqui, entre muros e paredes que não posso pintar. Mas sabe o que é pior, doutor? Não é não poder sair, não.
O pior é não conseguir achar a saída para o meu desespero, pra tanta dor e arrependimento. Leve o meu quadro, doutor. Quem sabe um pedaço da minha alma siga junto. Quem sabe ao levar o quadro a minha alma também se liberte.
Uma semana depois meu pai recebeu a notícia que seu cliente havia se matado. Enforcou-se com um cobertor velho preso no cano do chuveiro.

Mas porque ele, Antonio, agora senhor da casa, não dera um sumiço naquele quadro?
Ainda com o revolver de seu pai na mão, aponta a arma para o quadro e simula um tiro.
Voltando aos seus problemas, Antonio sente a pressão em sua cabeça aumentar.
O desespero parece querer tomar conta de seus músculos que se contraem a ponto de provocar câimbras.
Qual era a saída? O que poderia fazer?
Já podia imaginar o seu futuro.
Demissão sumária, processo e prisão. Anos no exercício do direito não lhe valeriam de nada.
Precisaria de um bom criminalista, como seu pai. Sem querer agradece o fato do seu pai não estar vivo.
A vergonha seria imensa. Passar a vida inteira defendendo todas as espécies de criminosos, não o faria
defensor do próprio filho, agora um criminoso.
Com certeza, se o enfarte não o houvesse levado cinco anos atrás nesse mesmo escritório, o fato de ver o filho preso e cumprindo pena, certamente o faria.
Preso, trancafiado em uma cela por pelo menos dez anos. Tudo, do pouco que possuía, indo a leilão.
Nem mesmo a casa de seus pais seria poupada.
E Rodrigo então? Qual seria a reação de seu filho ao ver as fotos e manchetes colocando o seu pai
como um bandido?
Apesar da separação da sua mulher e das brigas dentro de casa, para Rodrigo ele sempre fora um herói.
Quantas vezes não brincaram juntos pela casa, travestidos como os Guardiões da Justiça, sempre em luta contra malfeitores imaginários?
De todas as punições talvez fosse essa a pior de todas. Encarar o seu filho e ver a decepção estampada
no olhar do menino.
Olha o quadro mais uma vez. Por um momento a figura do homem lhe parece familiar.
Sente a sua camisa empapada de suor. Ondas de calafrio percorrem todo o seu corpo.
Toda a sua vida começa a girar em sua volta. Lembranças, imagens esquecidas, angústias e arrependimentos.
As mãos não param de tremer, agitando o copo de uísque e o revolver em movimentos descontrolados.
E a cabeça, então?
A bigorna, o martelo que não para nem ao menos um minuto, num ritmo cada vez mais alucinante.

-Pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá
A dor, a culpa, a vergonha,

- Pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá
O quadro, o homem, a angústia

- Pum!



quarta-feira, 11 de abril de 2012

O espelho

Celso Pinheiro de Oliveira

-Filho, acaba logo de escovar os dentes que você vai chegar atrasado na escola!

O grito da mãe tirou o garoto do seu encantamento matinal.
Momentos de reflexão em frente ao espelho para acertar a sua
agenda diária, que para os seus doze anos parecia uma sucessão interminável de tarefas.

Escola, quatro aulas maçantes entremeadas por um recreio cheio de correrias
na quadra na disputa do “mata-mata”, partidas de futebol nas quais o time que fizer o primeiro gol tem o direito de permanecer no jogo, eliminando seu adversário.

Terminada as aulas, o acertado com o seu amigo Luiz era irem nadar no Palmeiras até a hora do almoço.
Na volta, a subida da ladeira que os trazia do clube para casa, debaixo de um
sol de mais de 30º, já seria um grande exercício, mas não para os dois.
O acordo era almoçar, fazer a lição de casa na maior rapidez possível e voltar para o Palmeiras para passar o resto da tarde jogando futebol.

Para ele, ao contrário do amigo palmeirense, bem que o clube poderia ser o Parque São Jorge, mas como o Corinthians ficava do outro lado da cidade, a diversão era feita mesmo no território dos “inimigos”.
Jantar, televisão e cama para terminar o dia, porque as saídas noturnas só eram permitidas para o seu irmão mais velho.

Por um instante ele ficou a imaginar a vida com as possibilidades da noite.
Como ele e seu inseparável amigo Luiz iriam fazer parte dessa fraternidade ultra secreta, a dos meninos que podem sair à noite.

Os famosos bailinhos, as bebidas proibidas para os da sua idade, as meninas....
Aquela tal de Rita Moss cantando uma música chamada “Just a dream ago”. A menina
tentando afastar o corpo do seu corpo que insistia em colar.

E beijar? Será que ele saberia beijar quando chegasse a sua hora?
Lá estava ele, com um cigarro entre os dedos para parecer mais velho. O treinamento já estava sendo feito. Vez por outra, ele e o Luiz já conseguiam um cigarro para fumarem escondidos nas escadarias do seu prédio.

Namorar? Bom, namorar era coisa pra quando estivesse na faculdade.

Lembrou que nessa época estaria separado do seu grande amigo.
Luiz queria ser engenheiro, enquanto ele alternava entre educação física, direito (como seu pai e seu irmão), ou até mesmo essa coisa de publicidade.

Na faculdade sim, essa era a época certa para namorar, quem sabe até para achar a mulher com quem iria casar e ter seus filhos. Talvez filhas, quem sabe.

E como seria a vida do Luiz?

Provavelmente também se casaria e teria seus filhos. Quem sabe nossos filhos não se tornariam amigos como nós dois?
Aí voltaríamos a ser amigos. Jogar bola, viajar, sairmos todos juntos.
Quem sabe essa amizade possa nunca ter fim.


- Amor! O Luiz e a Alice chegaram. Você pode abrir a porta para eles que estou terminando de me arrumar?


Ele ajeita os cabelos que o tempo fez questão de embranquecer, dá um sorriso e vai cumprir o solicitado.

Lá no fundo, bem no fundo do espelho, aquele garoto também sorri.

Afinal, tudo havia sido como tinha que ser.

Rita Moss
http://www.youtube.com/watch?v=FYgXdMVmjzk

segunda-feira, 26 de março de 2012

Uma aula celestial

Celso Pinheiro de Oliveira

A ansiedade era enorme, afinal, o tão aguardado convidado estava para chegar.
Como em um balé mágico, cada um dos presentes procurava naquela agitação dos acertos finais, o seu exato lugar
na festa, para que tudo corresse dentro do que fora previamente combinado.
Um velho coronel, vestido com um terno de linho branco e chapéu de abas largas, ainda acreditando em um poder a muito
perdido, bradava ordens de comando não obedecidas, enquanto procurava por todo o salão a sua mulher Maria Teresa.
No canto do bar, em seu enésimo uísque, um sujeito completamente entorpecido pela bebida, respondia a todos
que o chamavam de bêbado “...sou, mas quem não é?”
Em uma das muitas rodas de amigos formadas pelo local, avistava-se um senhor com um óculos de grau que possuía uma só das lentes
escura, como se fosse um tapa olho. Em voz alta, coisa que acentuava ainda mais o seu sotaque nordestino, contava para todos como
havia capturado uma onça feroz usando somente a força do seu pensamento, coisa prontamente confirmada pela esposa Terta, sua
fiel testemunha.
Uma senhora com um chapéu e luvas brancas rendilhadas, sentada em uma das poltronas, falava ao telefone com ares de segredo.
O comentário que corria pela festa é que ela estava falando com alguém importante de Brasília
Certamente não seria com o deputado, que com um bigode que mais parecia uma vassoura de piaçava, reclamava de todas as pessoas
humildes que o procuravam para fazer algum pedido, afirmando que para ele todos os pobres deveriam explodir.
Celebridade como convém a todo grande evento, não faltavam.
Um provável galã de novelas mexicanas, com uma inenarrável redinha a prender seus cabelos e um blazer que mais
parecia um robe de cetim, aborrecido por alguma pergunta feita pela entrevistadora de uma televisão, gritava para que
todos pudessem ouvir, “Eu não garavo mais!”
As atenções da imprensa logo se voltaram para mais um “famoso”, que vestindo um surrado agasalho esportivo, com uma bola
de futebol murcha embaixo do braço, insistia em afirmar que só estava esperando a convocação do Mano para se integrar a equipe
da seleção brasileira.
Enquanto isso, desfilando entre os convidados com um enorme crachá prateado pendurado no pescoço, um rapaz dentuço buscava seduzir
as mulheres presentes dizendo-se poderoso e amigo da “diretoria”.
No palco, um grupo de artistas com imensas cabeleiras e vestidos à la tropicália, cantavam uma música com um refrão esquisito, qualquer coisa
como ....vou batê pra tu batê, pra tu batê.
Observando ao longe, um velho negro com cabelos brancos encaracolados como se fossem nuvens, afasta dos lábios seu
cachimbo de madeira e sorri ao ver o esforço de um garçom fanho, com um bigodinho pequeno e fino, tentando explicar a um convidado
qual seria o cardápio.
Repentinamente as luzes se apagam e a música para. Silêncio.
O facho de um canhão de luz é dirigido para a porta principal do salão que se abre para deixar o convidado entrar.
Ele chegara!
Caminhando vagarosamente, como a querer saborear cada segundo da sua homenagem, o velho mestre encaminha-se ao
centro do salão.
A cabeleira ainda é toda branca, as rugas ainda desenham o seu rosto, como se quisessem perpetuar a história de toda a sua vida.
O terno - o mesmo - puído por anos de lavar e tornar a vestir. A gravata, que um dia fora encarnada, e que agora o tempo se incumbira de rosar.
Mas alguma coisa estava diferente.
As dores de coluna que por tantos anos lhe incomodaram haviam desaparecido. A tosse, cultivada a pó de giz durante uma vida inteira, não se
fazia presente. Suas pernas enfraquecidas haviam adquirido força nova. Caminhar já não era mais um sacrifício, a ligeireza havia voltado. Parecia
pronto para correr novamente pelas caatingas do seu nordeste, quem sabe até voltar a jogar futebol, no ataque do seu Vasco, quem sabe.
Olhando á sua volta reconhece a cada um dos seus filhos. Recorda o sofrimento e a alegria de cada criação. Cada um, um pedaço dele próprio.
Mãos o levantam e carregado em triunfo é conduzido ao palco. Ali sempre fora a sua casa, sua vida, sua fé.
As luzes não o impedem de enxergar a todos. Consegue avistar seus antigos companheiros, pessoas que tanto ajudou, mas que sempre souberam retribuir
cada gesto de carinho.
Convoca-os ao palco, chamando cada um pelo nome.
Enxuga a lágrima teimosa que insistia em cair e com a habitual voz rouca dá o comando.
- Senhores, ao trabalho! Vamos lá que aqui o Chefe não gosta de atrasos.
Nós, aqui na Terra ficamos órfãos, mas tenho a certeza que o Céu ficou um lugar muito, mas muito mais feliz de se viver!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Um conto de Natal

Celso Pinheiro de Oliveira

Vitor sentia suas pernas pesadas ao caminhar pela rua naquele fim de dia.
A temperatura era um pouco mais amena, apesar do sol ainda brilhar. Seis horas da tarde pelo horário de verão, cinco horas pela natureza, que teimava em cumprir o seu calendário normal.
Uma praça cheia de crianças lhe chamou a atenção. Toda florida e bem conservada, com bancos colocados sob as árvores para proteger seus ocupantes do sol.
Encaminhou-se para o banco mais afastado, sentou-se e procurou esconder o seu silêncio por trás do alarido provocado pelas brincadeiras da criançada.
Sentindo-se extremamente velho, apesar dos seus cinquenta anos incompletos, achou natural estar em um banco de praça ao entardecer.
Tentava afastar dos seus pensamentos a conversa com o diretor da sua empresa. Conversa difícil que, por mais que lutasse para afastá-la da mente, insistia em voltar a todo o momento.
Gerente gráfico, com mais de dezoito anos de trabalho na empresa, fora chamado pelo seu diretor logo após o almoço.
Após todas as perguntas preliminares de praxe, tipo como ia a família, se os filhos estavam indo bem na escola, se Vitor já havia comprado todos os presentes para o Natal que se aproximava, o diretor iniciou o discurso cuidadosamente preparado.
- Meu caro, como você já deve ter notado o nosso movimento aqui na gráfica vem caindo muito esses anos. Nesse último, em especial, tivemos uma redução de mais de 30% em nossas vendas! A situação está insustentável e se não tomarmos as providências necessárias corremos o risco de fechar as portas.
Vitor foi sentindo o seu corpo afundar na cadeira. Parecia, apesar de não querer acreditar, pressentir o rumo que aquela conversa iria tomar.
- Sabe, Vitor, eu prefiro ser direto, principalmente com um funcionário como você que sempre teve um comportamento e um nível de trabalho excepcional. Mas, a verdade é que estamos sendo obrigados a fazer ajustes visando à sobrevivência da empresa, e, infelizmente, a partir de hoje teremos que dispensar os seus serviços profissionais.
- Como assim? Estou sendo demitido?
- Sinto muito, meu amigo, mas não há o que fazer.
- Mas por quê? Justo agora nas vésperas do Natal?
- Pois é....a diretoria entendeu que era melhor fazer isso agora, antes das nossas férias coletivas, assim as pessoas que forem demitidas poderão contingenciar melhor as suas poupanças, evitando gastos excessivos com as férias.
Vitor não podia acreditar no que estava ouvindo. Tinha tomado conhecimento das mudanças que estavam para acontecer através da famosa "rádio peão". Ouvira que algumas pessoas mais velhas poderiam ser trocadas por jovens com a metade da experiência, mas como contrapartida com um salário que era de um terço dos veteranos.
Mas justo ele!
Pensou em todas as horas extras, todos os finais de semana longe da família, toda dedicação ao crescimento da empresa, para acabar nisso? Demitido uma semana antes do Natal?
Sentia a alma apertada e um gosto amargo na boca. Gosto de derrota, de perda.
Como ficariam as coisas em casa?
Sua mulher havia largado o emprego de secretaria para cuidar da casa e da família. O salário de gerente da gráfica sempre fora mais que o suficiente para todas as necessidades da casa e das crianças.
Toda a sua poupança fora usada para acabar de pagar o empréstimo da sua casa e o que receberia como quitação trabalhista daria no máximo para pagar as contas pelos próximos seis meses.
E depois disso, como faria?
Quem lhe daria emprego com essa crise e com a sua idade?
Sentando no banco da praça, começa a sentir o corpo formigando e os olhos a pesar.
- Incomodo?
Um senhor de cabelos brancos sentara ao seu lado.
- Desculpe-me a intromissão, mas você está bem?
Vitor nota a suavidade da voz e fica admirado com a vivacidade dos olhos azuis
que pareciam lhe interrogar. Olhos de criança, como o povo costumava falar.
- Estou sim. estou apenas tendo um dia muito ruim. Acabei de ser despedido e estou sem forças para encarar a minha família.
- Enfrentar a sua família? Mas, por quê? Vocês estão brigados?
- Não, imagine! Eu amo a minha mulher e meus filhos. Eles são o meu maior bem, sempre dispostos a me apoiar. É só...jeito de falar, certo? Na verdade me sinto derrotado, sem forças para encará-los. Com receio da reação, entende?
- Ora, se você ama a sua família assim como eles te amam, não acredita que eles serão os primeiros a te apoiar?
- Sim, você tem razão. E que no fundo a gente acaba se sentindo descartável, um velho ultrapassado e sem serventia....
- Mas que absurdo, meu filho! Isso lá é jeito de se pensar? Quantos anos você tem?
- Faço cinquenta anos em janeiro.
- Ora, você é um menino! Eu acabo de completar setenta e sete anos e continuo me sentindo um garoto...
Era muito estranha a sensação que Vitor sentia. Aquele senhor era tão familiar, como um parente ou um amigo distante.
- Perdão, qual é o seu nome mesmo?
- Eu me chamo Leon. E você?
- Vitor, eu me chamo Vitor.
- Sabe, Vitor, ser despedido faz parte da vida de qualquer profissional. É uma situação a que todos estamos sujeitos. Você vai ver que logo aparecerá outro emprego.
- É, mas hoje em dia a situação é diferente. Com cinquenta anos as oportunidades de emprego são quase nulas. Ninguém vai querer me oferecer um emprego.
- Não diga isso, meu rapaz! Como você vai conseguir convencer alguém da sua capacidade se você é o primeiro a se anular?
A simpatia por aquele senhor só aumentava. Vitor não sabia o porquê, mas sentia uma vontade enorme de abrir seu coração para Leon.
- É...mas quanto tempo isso pode levar? Posso não conseguir uma recolocação, e com as coisas no mercado se complicando cada vez mais, posso levar a minha família a uma situação muito difícil. Isso eu não iria suportar....
- Vitor, Vitor. Mas que é isso, meu rapaz! Um profissional com a sua experiência sempre faz falta. Tudo é uma questão de se eleger os alvos corretos, de procurar empresas que precisam da capacidade e conhecimento que as suas qualificações podem trazer. Juventude não é tudo. Como dizem no futebol, existem os jogadores que correm a partida inteira e existem os jogadores que já sabem aonde a bola vai, não é?
O exemplo conseguiu arrancar o primeiro sorriso de Vitor.
- Você tem razão, mas tenho muito medo do que possa ser o meu futuro e o da minha família.
- Deixe lhe dizer uma coisa, Vitor. Na vida existem três tempos; passado, presente e futuro. O passado é como o retrovisor de um carro. Se você dirigir a sua vida olhando pelo retrovisor, não irá enxergar nada à sua frente, podendo provocar um grave acidente. Lembre-se, o passado jamais pode ser mudado.
O futuro ainda não aconteceu e sempre dependerá das atitudes que tomarmos no presente.
Sabe por que presente tem esse nome, Vitor?
- Porque esse tempo foi o verdadeiro presente de Deus. É o período do livre arbítrio, o período em que a vida acontece com todo o seu esplendor. O presente é a única etapa da nossa existência que podemos interferir, mudar o resultado, preparar o futuro escolhido.
Se você utiliza o presente para remoer e lamentar todos os erros do passado, além de não viver todas as possibilidades do seu presente, acaba condenando o seu futuro.
Traga do seu passado apenas as experiências que irão ajudá-lo - no presente - a construir bons alicerces para o seu futuro.
E nunca, nunca mesmo se esqueça que quem tem medo do futuro deixa de aproveitar a dádiva ofertada por Deus, o presente.
Vitor já ia respondendo quando repentinamente se dá conta que estava sozinho no banco.
O que aconteceu? Adormecera? Tudo seria um sonho seu?
Mas não era possível...Leon parecia tão real, tão presente. Como poderia ter sido um sonho, ainda mais com uma pessoa com um nome tão estranho, Leon?
Um flash atravessa o seu pensamento. É claro! Lembrou-se das brincadeiras de criança, dos anagramas. É isso, Leon visto pelo espelho - Noel!
Loucura? Maluquice?
Lembrou da sua mãe a lhe dizer - "...filho, as respostas as nossas dúvidas estão quase sempre dentro de nós mesmo, basta querer escutá-las".
As suas angústias, aproveitando o momento do fim de ano, teriam personificado a sua voz interior, a sua consciência, na figura do velho Noel?
Sua auto-análise é interrompida por uma pequena mãozinha a lhe cutucar o joelho.
Abrindo os olhos, Vitor vê uma menininha linda a lhe oferecer uma flor que pegara no jardim da praça.
-É pra você, tio. Não fica triste, tá!
Um pouco mais adiante a mãe da menina chamava por ela.
- Vem filha, para de incomodar o moço.
Vitor apanha a flor da mão da menina e pergunta.
- Que linda flor, menina linda!Obrigado! Como você se chama?
- Esperança, tio. Eu me chamo Esperança.