domingo, 29 de agosto de 2010

O encontro

Ele foi o primeiro a chegar. Ocupando o lugar que lhe era destinado, passou a observar todos os preparativos do pessoal da casa na arrumação do evento.
As mesas sendo cobertas por toalhas vermelhas e brancas recém chegadas da lavanderia. Pratos e talheres sendo dispostos com precisão milimétricas. Como em uma dança exaustivamente ensaiada, os funcionários executavam suas tarefas seguindo uma marcação invisível.

Dispensa cortesmente um garçom que viera lhe oferecer uma bebida. Sabia que havia chegado antes do horário combinado, mas a ansiedade tomara conta das suas emoções.
Havia esperado dois anos por aquele momento. Setecentos e trinta dias recheados de inúmeras horas de incertezas, dúvidas e temores de não conseguir alcançá-lo.

Mas lá estava ele, cercado por aquelas paredes de tijolo à vista com mais de duzentos anos de história. Quantas alegrias e tristezas foram presenciadas por elas.
Amores iniciando e encontrando um fim, celebrações, amizades, sonhos de sucesso nos dois lados do balcão.

Marco, proprietário da casa, da porta de entrada acena avisando que os convidados já estavam chegando.

As primeiras a entrarem eram a sua mulher e as suas filhas. Responsáveis por tudo e por todos, ele sabia que sem a dedicação e trabalho de suas mulheres, esse evento seria impossível. Maior presente que a vida havia lhe dado, elas eram o alicerce, a base sólida que suas pernas trôpegas encontraram para se manter em pé e prosseguir na luta do dia a dia, principalmente nesses últimos tempos. Lindas, amorosas, leme forte do seu barco em mares revoltos. Nenhum agradecimento seria o bastante para compensar todo o amor recebido.

Apoiada nos braços das suas filhas vinha sua mãe. Qualquer definição da palavra mãe teria que levar o nome daquela mulher. A entrega, dedicação em tempo integral para os filhos, a anulação pessoal em benefício do crescimento da sua prole, a professora, a mestra para todos os momentos. Caminho e exemplo. Pai e mãe pela vida.

Ao lado da sua mãe, os pais da sua mulher. Era engraçado como o tempo e a convivência funde e amolda as relações e as pessoas. Os três ali, juntos, passam a representar um único sentimento: nossos pais, meus e da minha mulher. O pai, responsável direto por esse encontro. Dele era a pátria agora compartilhada por todos. Cada ponto daquela cidade, suas muralhas, seu anfiteatro, suas torres, já estavam em nossos pensamentos mesmo antes de conhecê-la. Porque fora dele o maior ensinamento que um pai pode passar ao seu filho, ele havia ensinado a amar. Das filhas a terra distante, amar sempre amar.

A prima conduzia a sua tia, que aceitara uma incumbência maior, ser a sua madrinha.
Uma mulher excepcional, que pelo porte e elegância afugentava o passar dos anos, tratando a vida com a leveza da adolescência.

Na sequência vieram seus irmãos. Os de sangue, os que vieram com os casamentos e os que ele escolhera pela vida.

O irmão mais velho, que apesar das distâncias em determinadas fases da vida, sempre fora o seu norte, o seu instigador de comportamento. A mulher, cuja força fora testada na mais cruel das provações, estava ao seu lado, fiel garantidora do equilíbrio do casal. Estavam representando o irmão mais novo, que por compromissos profissionais inadiáveis não havia podido comparecer. O caçulinha, seu companheiro dos carrinhos e das brincadeiras de cowboy.

O seu irmão dos bancos de escola. Juntos deram os primeiros passos pelos caminhos da juventude. Bailinhos, esportes, namoradas, até a descoberta dos segredos do amor e do sexo. Encontrara uma companheira para a vida com um coração enorme, que fazia da sua profissão uma ferramenta de ajuda aos necessitados.

O irmão da faculdade, que na verdade lhe chegara pelas mãos da sua irmã. Sócios na vida e pela vida, um ombro sempre presente em seus momentos de aflição e insegurança.

Os irmãos advindos do casamento. Um casal que se completava em seus sonhos e objetivos, que sabiam dividir com todos que os cercavam a alegria de viver a vida.

Os irmãos de porta que haviam sabido transformar o corredor que os separava em uma extensão da própria casa. A recepção e o carinho no acolhimento do casal que chegava. Amigos, filhos e afilhados, a união de uma família.

E, é claro, os irmãos da casa comum. Ele recebera de Deus o dom de salvar vidas enquanto a mulher fazia a sua parte cuidando dos aflitos. Par perfeito para um trabalho abençoado.

Fechando a entrada dos convidados, a sua família da terra. Tios, tias e irmãos conquistados pelo amor e simpatia.

Agora todos estavam lá, em uma demonstração que a verdadeira família não necessita de uma pátria comum, nem ao menos de um sangue comum. Ela precisa sim é de amor, de compreensão, de um claro entendimento das diferenças. Sim, porque as diferenças não existem para separar, mas para complementar o ser humano e fazê-lo entender o caminho que ainda falta percorrer em busca do seu crescimento.

Os lugares estavam preenchidos. Ele olha a sua volta encontrando em cada rosto um sorriso acolhedor. Pergunta-se se de alguma maneira merecia todo esse afeto e dedicação, essa cumplicidade de sentimentos e emoções. Sabe que cada um deles representa um pedaço do seu conhecimento e que unidos formavam o mosaico da sua vida.

O dia havia chegado. O objetivo havia sido alcançado. Agora todos formavam a mesma família. Uma família unida apenas pelo fio condutor do amor, do querer bem.

Fecha por instantes os olhos e pede a Deus que lhe dê, por um minuto que seja, a sabedoria para poder transformar todas as suas emoções em palavras, para que pudesse expressar a imensa felicidade que estava vivendo.

A garganta parece diminuir e teimosamente algumas lágrimas tentam atingir seus olhos.
Agora não, agora ele não podia chorar.

Respira fundo e pondo-se de pé ergue um brinde. A hora chegara.

domingo, 8 de agosto de 2010

O anel roubado

Celso Pinheiro de Oliveira

O relógio de cabeceira, com seu display luminoso, marcava uma e trinta da manhã.
Zuleica tateia com as mãos até sentir o corpo do marido ao seu lado. Pelo barulho ensurdecedor de seus roncos certamente já se encontrava no décimo sono.

Vagarosamente afasta as cobertas e procurando não provocar o menor movimento na cama, levanta-se e pé ante pé caminha em direção ao canto do quarto. Antes de pegar a calça que seu marido havia largado sobre a poltrona olha em direção ao esposo, certificando-se, mais uma vez, de seu sono profundo.

Enfia a mão no bolso lateral da calça que, de tão embolada que estava, oferece resistência às tentativas da busca. Finalmente encontra o que procurava. Tinha muita sorte do marido não gostar de usar carteira. Dizia que incomodava e só servia para chamar a atenção dos punguistas. Preferia o bom e velho prendedor de notas.

Com a experiência de anos de atuação, mesmo no escuro, Zuleica vai direto ao miolo das cédulas, em busca das notas de maior valor. Essa era outra mania de Percival. Sempre colocava o dinheiro na ordem crescente de valores. Menores por cima, maiores por baixo.
Separa duas notas. Com sorte seriam duas de cinquenta, isso seria o suficiente.

A consciência sempre pesava naquela hora, mas a esperança de terminar a semana de azar e conseguir recuperar o dinheiro, mesmo sem devolvê-lo ao marido "patrocinador", trazia certo conforto.

Maldito bingo!

Ultimamente os números não estavam ajudando. Sempre que ficava a duas pedrinhas da vitória, em algum canto do salão alguém gritava "Bingo!" e pronto, mais uma cartela perdida.

Na contabilidade de Zuleica, como na de qualquer viciado em jogos de azar, só era computado os resultados positivos. Os cem reais do mês passado, os duzentos e trinta daquele final de ano, os cento e oitenta ganhos às vésperas do carnaval...
Todos os prejuízos dos quatro anos de jogatina ficavam na íntegra no bolso do maridão.

Recoloca a calça na cadeira, esconde no sutiã as notas surrupiadas e volta para a cama, procurando acalmar o coração turbinado pela adrenalina da ação. Emparelha a sua respiração com a sequencia de roncos do marido e vagarosamente abandona o corpo ao sono que chegava.


- É, Dona Zuleica. Acho que essa perna aqui vai precisar de umas picadas. Enquanto falava, Dr. Marcio passava nas pernas de Zuleica um aparelho luminoso que transformava a mais escondida das veiazinhas no mais explícito vaso sanguíneo.

- Vou ter que deixar para depois, Dr. Marcio. Meu marido está em contenção de gastos e já avisou que dinheiro para as injeções das minhas varizes só o mês que vem.

- Ora, Dona Zuleica, a senhora tem crédito. Cuidamos dessas varizes agora e acertamos depois - falou Dr. Marcio com um sorriso nos lábios.

Ele sabia qual era a razão de Zuleica postergar a aplicação das injeções. Com o tempo, acabara por se tornar uma espécie de ouvidor dos seus pacientes mais antigos. Conhecia o vício da Zuleica, sabia que certamente o marido havia lhe dado o dinheiro das aplicações e ela gastara no bingo.

-Ah, doutor, será? Bom, se o senhor acha que é melhor fazer agora, tudo bem. Prometo que acerto tudo depois.


Aquela noite o jantar estava atrasado. A espera pela sorte no bingo havia tomado mais tempo do que o esperado. E o que é pior, ela não veio. Maldito 22, dois patinhos na lagoa, só faltou ele. Era a chance de recuperar o prejuízo do dia, mas o número apontado foi o 37 e aquela senhora, com óculos com lentes "fundo de garrafa", conseguiu enxergar a sorte antes que ela. Gritou bingo e acabou com as esperanças de Zuleica.

- Não faz mal, amanhã será o meu dia - pensa Zuleica, enquanto abria a massa para a torta de frango, prometida para o jantar do marido.

Ajeitando a massa dentro da forma, Zuleica sente um arrepio percorrer a sua espinha. Olha para as suas mãos e em desespero constata que o seu mais precioso anel havia sumido. Não que tivesse muitos, só dois. A aliança de casamento e ele. O anel de brilhantes que seu marido havia lhe dado ao completarem trinta anos de casado. Uma jóia caríssima, como Percival estava sempre reafirmando.

Revira todas as panelas, travessas e potes da pia e da bancada da cozinha. Cutuca o ralo, passa o pente fino no lixo, cutuca cada cantinho em baixo dos móveis. Nada!

Começa a revisar cada lugar que passou durante o dia. O supermercado de manhã, doutor Marcio após o almoço, o bingo. Com certeza em algum lugar havia caido, pensa ela. O último regime espartano a que havia se submetido, apesar de não livrá-la completamente dos terríveis pneuzinhos da sua cintura, havia afinado um pouco seus dedos, deixando uma pequena folga no anel.

-Porque não levei o bendito anel para apertar! Ela sabia que o marido, como grande observador que era, iria dar pela falta do anel. Tinha que encontrar alguma maneira de disfarçar, pelo menos até o dia seguinte, quando iniciaria a peregrinação pelos locais em que estivera, na tentativa de encontrar alguma pista.

- Essa torta de frango está uma delícia! Percival não conteve a exclamação ao experimentar o primeiro bocado. Coisa dos deuses! Ato contínuo busca as mãos de Zuleica.

-Beijo as mãos dessa verdadeira artista da cozinha! Mas... O que aconteceu? Cadê o seu anel?

-Pois é, amor. Hoje resolvi pegar a Zefá de jeito e fizemos uma super faxina na casa, até o encardido da banheira saiu. Quando terminamos notei que o meu anel havia sumido. Ele estava um pouco largo e deve ter caído em algum canto na hora da limpeza.

- Mas não se preocupe. Amanhã com a luz do dia vamos encontrá-lo, até já amarrei São Longuinho no pé da cadeira para nos ajudar.

-São Longuinho?? As crendices da sua esposa eram no mínimo pueris. Ele não conseguia aceitar que, amarrando um toco de madeira ao pé de uma cadeira, chamá-lo de São Longuinho e só libertá-lo após o pedido ser atendido, pudesse alcançar algum sucesso.

- Espero que ele realmente te ajude. Você sabe como custou caro aquele anel.

-Não se preocupe Percival. Amanhã o anel estará em meu dedo. Agora, continue comendo sua torta que ela está esfriando....


No banheiro da sua suíte, Zuleica retirava a maquilagem, comemorando o relativo sucesso da sua desculpa.

-Ufa, por hoje eu escapei! Amanhã tenho que achar esse anel de qualquer maneira.

O marido, que se preparava para deitar, grita do quarto.

-Amor, tenho que reconhecer que a sua fé é grande!

-O que?

- Seu amigo, São Longuinho...Ele é poderoso mesmo, só acho que você não devia soltá-lo.

-Você está ficando louco, Percival? Zuleica volta ao quarto encontrando o marido de pé, com as calças na mão, segurando algo entre seus dedos.

- Olha só o que achei.

-Como? Meu anel! Você encontrou o meu anel? Estava no chão? Embaixo da cama? Onde estava?

- Não, nada disso. Ele estava no bolso da minha calça, aquele bolso que eu coloco o meu dinheiro.

-No bolso da sua calça? Como assim? Como ele foi parar lá?

-Como foi não faço a menor idéia. Só sei que o seu querido São Longuinho está ficando muito mercenário.

-Mercenário??

- É...Devolver ele devolveu, mas me cobrou cem reais pelo serviço!

A presença

Celso Pinheiro de Oliveira


O silêncio da sala de estar em que Abel lia o seu romance preferido é bruscamente quebrado pela entrada de seu neto, Pedro, que em desabalada carreira, desviando perigosamente da quina da mesa de centro, corre gritando ao seu encontro.

-Vovô, vovô! Olha o que eu e a vovó achamos no quartinho da bagunça!

"Quartinho da bagunça" era o depósito que o apartamento possui na garagem do prédio, onde se guardava tudo aquilo que não tinha mais utilidade, mas não se encontrava a coragem de jogar fora. Abel preferia chamá-lo de quarto das recordações.

Nas mãos de Pedro, um irrequieto menino de sete anos, um objeto de plástico, no formato de uma pequena pia enquadrada num mural, que tinha ao topo uma imagem de Nossa Senhora.

Passando as mãos nos cabelos encaracolados do menino, Abel puxa a criança para o seu colo e com um beijo nas bochechas rosadas começa a explicação.

-Isso é uma piazinha de água benta. Quando o vovô a ganhou tinha quase a sua idade. Está vendo esse furinho no alto, serve para pendurá-la na parede ao lado da cama.

-Água benta? O que é água benta? É da vovó Benta do Sítio da Emília?

Abel sorri e se dá conta que para o seu neto conhecer a história do Sítio do Pica Pau Amarelo já havia sido uma vitória. Esperar que ele tivesse noções dos chamados ritos da igreja católica, já tão em desuso, seria uma coisa impossível.

-Água benta, meu filho, é uma água abençoada pelo padre na igreja e que antigamente usávamos, após as orações da noite, para passar na testa fazendo o sinal da cruz. Enquanto falava, Abel fazia com os dedos o sinal na testa do menino.

-E pra que servia isso, vô?

-Era para proteger, para que todos os seus sonhos fossem sempre bonitos - diz Abel procurando simplificar as explicações.

-Sabe, vô. Eu às vezes tenho uns sonhos feios....fico com muito medo, até cubro a cabeça com o travesseiro.

-Será que se eu pedir pra vovó ela pede pro padre um pouco dessa água pra mim?

-Claro que sim, vai lá pedir para ela. Depois o vovô vai a sua casa e coloca a piazinha do lado da sua cama, tá bom?

Abel nem bem terminara a frase e o menino já corria a procura da avó.

Com o silêncio de volta a sala, Abel tem seus pensamentos voltados para o passado. A idade era a mesma do seu neto, só que as mãos que seguravam o relicário eram outras. Não branquinhas como as do menino, mas negras como a noite.

Cata, a querida tia Catarina, um anjo negro colocado na terra para ajudar e proteger as vidas de todas as pessoas que tinham o privilégio de conviver com a sua bondade.

Uma alma sem volta, que já havia alcançado o último degrau da espiritualidade. Um ser feito de puro amor e compaixão, sem espaço para qualquer maldade ou fraqueza humana.
Nascida para a mais nobre de todas as missões, servir a todos que a cercavam.

Ah, e os seus doces de leite! O presente mais aguardado por Abel em seus aniversários. Aquela lata usada de biscoitos São Luiz, recheada com pedacinhos de doce de leite, era um tesouro magnífico que Abel sempre corria a esconder do alcance de seus irmãos.

De quando em vez, Cata juntava uns trocados que recebia de seus irmãos e pedia para ele acompanhá-la ao cinema. Mãos dadas, lá iam os dois para assistirem a mais nova comédia de Jerry Lewis. Riam até o estômago doer, vivendo um instante mágico em que a diferença das idades deixava de existir.

Com a janela das suas lembranças escancarada Abel começa a viajar por todas as pequenas histórias que compunham o painel da sua vida. A presença da Cata era uma constante. Da adolescência de Abel até o nascimento da sua primeira filha, ela sempre estivera presente, de forma velada, como a presenciar a distância o crescimento da terceira geração aos seus cuidados.

Pouco tempo depois da morte da mulher, a quem a vida toda chamou de mãe, Cata também fez a sua passagem. Um pedaço do passado de Abel pareceu ficar solto, como um barco a deriva.

Mas o que parecia ser uma perda irreparável acabou tornando-se a grande proteção da sua vida.

Sim, do outro lado da vida, Cata continuava seu trabalho de protegê-lo em cada instante de dificuldade, em cada momento de angústia. Abel podia senti-la ao seu lado, dando o conforto e a força necessária a cada superação imposta pelo seu destino.

Um arrepio percorre o corpo de Abel e uma súbita vontade de chorar o acompanha. Era o sinal. Mesmo sem conseguir vê-la ele sabia que ela estava ali, bem ao seu lado.

-É, minha preta...O que seria de mim sem a sua força, sem o seu auxílio. Viu só o Pedrinho? Ele encontrou a sua piazinha de água benta e saiu todo contente em busca da avó. Esse menino é muito amoroso, com o coração do tamanho do mundo. Tenho certeza que com a sua proteção vai se tornar um grande homem.

- Ora, veja. Lá estou eu de novo a fazer os meus pedidos, sempre precisando do seu amparo. Você acha que é muito egoísmo da minha parte?

A lembrança daquele sorriso enorme, lua cheia em noite escura de verão, traz a resposta que dispensava palavras, a certeza de um sentimento eterno de proteção e amor.

Abel, com uma lágrima teimosa de canto de olho, envia feliz um beijo para o infinito.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A roda da vida.

Celso Pinheiro de Oliveira


O sol começava a romper o horizonte, expulsando do céu os últimos traços da noite.
A areia branca fundia-se com o dourado do mar, reflexo da luz do alvorecer.

Gaivotas e pequenos pássaros ciscavam na praia a procura do café da manhã, enquanto a brisa, ainda fria, provocava arrepios nas pessoas que começavam a ocupar seus espaços na areia.

Juliano caminhou lentamente em direção a sua barraca, já devidamente arrumada e com as cadeiras dispostas em fila, eficientemente preparada pelo seu caseiro.

Sentado, fecha os olhos e inicia a sua tarefa matinal...escutar o silêncio do amanhecer.
O som das ondas funcionava como um mantra, que por repetição, conduzia a sua mente em uma viagem astral.

Aquela era a hora do dia que Juliano mais gostava. O entardecer tinha seus encantos, mas, para ele, simbolizava a luz cedendo espaço para escuridão.
O amanhecer era exatamente o contrário. A luz gerando a vida, a natureza tomando seu lugar na busca do eterno recomeçar.

Assim como as pessoas. Acordar e se preparar para mais um dia, no giro da roda do destino, que a cada um de nós conduz ao final correto.
O que realmente importa? O tempo vivido ou como você viveu o seu tempo?

Juliano não podia reclamar. Uma mulher amorosa e dedicada, um casal de filhos e duas netas.Uma família feliz e plena de amor.

A vida lhe trouxera mais ganhos do que perdas. Do alto dos seus sessenta e sete anos ainda se sentia com vinte. Não se reconhecia nas fotos atuais. Aquele senhor de cabelos brancos, com a calvície avançando velozmente, não podia ser ele. O espelho, seu fiel escudeiro, parecia ser mais amigo. Talvez porque refletisse o Juliano que ia pela alma e não o do RG.

Já dizia o pensamento popular "se você colocar um sapo em uma panela com água fervendo, ele pula e foge. Já se você colocá-lo na panela com água fria e deixá-la ferver, ele morrerá queimado".

Será que era isso? O espelho era a panela com água fria que não o deixava perceber o seu próprio envelhecimento?

Pensamento ruim se espanta. Juliano volta a observar a praia, agora já com a sua população acrescida de várias crianças, trazidas por suas mães em busca do "sol do bem", aquele a ser tomado antes das dez horas da manhã, que ainda não estava contaminado pelos poderosos raios ultravioleta.

Duas meninas brincando com seus baldinhos e forminhas de peixes o fizeram lembrar-se de suas netas.

Luisa e Valentina, dois presentes embalados em forma de crianças.

Helena, sua filha e mãe de Luisa conseguira gerar uma verdadeira cópia sua. Pele e cabelos mais claros e a mesma meiguice, que sempre conseguia transformar em cúmplices de suas travessuras todos os que estavam em sua volta.
Valentina, moreninha de olhos inquietos, já era uma boa mistura de seu filho Danilo com a mulher. Obstinada como a mãe e objetiva como o pai, estava sempre na liderança de todas as brincadeiras.

Uma bela família! pensou Juliano. A vida completando seu ciclo. De filho à avô num piscar de olhos.

Como a vida pudera passar tão depressa?

Ainda se via, criança pequena, cuja maior preocupação era saber se, ao crescer, conseguiria dar nós em seus sapatos.

Seu pai havia morrido cedo. Juliano não havia completado três anos.
Apesar de muito criança para sentir toda a dor da perda, Juliano carregou, em grande parte da vida, o aleijão da ausência. Era como se algo sempre faltasse, como tentar calçar um sapato em um pé que não existia.

Passou por todas as inquietações e dúvidas da infância e da adolescência de uma maneira autodidata.
Como serei recebido pelos alunos da minha nova classe na escola? Devo pedir ela em namoro? Como será a minha primeira transa? Que carreira devo seguir?

Quantas vezes não se pegou, em momentos da mais absoluta insegurança, a fazer perguntas ao pai ausente; se a atitude que havia tomado era certa, se o caminho escolhido era o melhor e, acima de tudo - a mais recorrente de todas as questões - se aos olhos do pai ele era um bom filho.

Quando se tornou pai tudo mudou. Não era mais ele quem fazia as perguntas.Passara a ser responsável pelas respostas. A roda da vida completara mais uma volta.

-Olha o sorvete do Rochinha!

O grito do vendedor interrompe as lembranças de Juliano.
A praia agora já estava repleta. Como cerejas de um bolo gigante, guarda sóis coloridos dos visitantes entremeavam o branco da areia e das barracas dos proprietários de casas.

Juliano decide dar uma entrada na água para se refrescar do calor. O dia prometia ser muito quente.

O mar calmo, quase sem ondas. Na linha do horizonte os grandes transatlânticos pareciam pequeninos desenhos a se moverem lentamente, cortando os espaços entre as ilhotas que, pela distância da praia, pareciam estar muito próximas.

Na posição em que Juliano estava era possível ver a sua casa, "pé na areia" para usar uma expressão comum aos corretores de imóveis.

Parece que a casa acordara. Luisa e Valentina, com suas bóias de braço, pulavam na piscina, brincando de "bomba”, cada uma tentando fazer espirrar mais água que a outra.

Helena e Danilo, com seus respectivos pares - Fabio e Bia - terminavam o café da manhã e se preparavam para a difícil tarefa de retirar as meninas da piscina e fazê-las comer alguma coisa antes de irem para a praia.

Uma família feliz. Amor e amizade unindo as pessoas da vida de Juliano.

Ele era parte de tudo isso. Percebe que se não fosse todos os obstáculos que teve que transpor, talvez não tivesse a capacidade necessária para chegar até ali.
Que as provações são degraus colocados nos caminhos das pessoas para conduzí-las ao alto.

A figura do pai volta ao seu pensamento. Sente o peito aquecido como se estivesse recebendo um abraço, sendo colocado no colo, como um dia certamente aconteceu.

-É pai. Acho que aprendi a dar os nós dos meus sapatos!

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Se hoje fosse meu último dia de vida

Celso Pinheiro de Oliveira


"Ok, foi um prazer almoçar com você. Desejo sucesso nesse seu empreendimento. Ousado para esses tempos que vivemos, mas bastante promissor". Os votos, seguidos por um rápido aperto de mão, demonstravam a pressa da partida.

-"Certo, Marcos. Qualquer novidade você me liga".

-"Como eu te disse estamos com todos os investimentos suspensos. Mas não se preocupe, vou deixar o seu caso em follow-up, ok ? - Marcos já descia a escada rolante do shopping em busca do estacionamento no andar inferior.

"Manter em follow-up" - tradução moderna- colocação de todo o material entregue na gaveta inferior da mesa de trabalho, mais conhecida como arquivo morto.

A minha frustração era enorme. Tinha grandes esperanças no projeto com a empresa de Marcos e, pelo rumo que tomou nossa conversa, a certeza da perda do negócio era evidente.

Expressões como investimentos suspensos, contenção de despesas, adiamento temporário de projetos - após a quebra do Lehman Brothers - tornaram-se as mais usadas no mundo de negócios pós crise.

Maldita hora que havia decidido abrir a minha própria empresa. Nos dois últimos anos vi todas as minhas economias serem reduzidas a pó. E o que era ainda pior. Afastado do mercado de trabalho por esse período, entrara na seleta lista dos desaparecidos para todos os head hunters do país, o que fazia da possibilidade de encontrar um novo emprego uma esperança bastante remota.

Minha única conquista havia sido uma arritmia cardíaca e a programação para a colocação de um marca passo.

A cirurgia, que deveria ter sido realizada na semana passada, estava marcada para amanhã. Havia conseguido o adiamento em função daquele almoço, na expectativa de entrar no centro cirúrgico com a calma do negócio acertado.

Resolvi andar pelas alamedas do shopping. Não queria levar essa nova derrota para casa. Ainda mais agora, na véspera da minha operação. A tensão que dominava a minha mulher e as minhas filhas poderia aumentar ao verem o desânimo que tomava conta de mim.

No canto do corredor em que estava, ao lado da máquina de retratos automática, ficava o engraxate. Achei que os meus sapatos mereciam uma graxa, na tentativa de fazer brilhar alguma coisa que fizesse parte da minha pessoa.

O velho engraxate, que estava sentado na cadeira do freguês, levanta-se com dificuldade e respeitosamente vira a almofada do assento para que eu pudesse me acomodar.

Com a mesma dificuldade senta-se em seu banquinho, aos meus pés, dando início aos trabalhos. Cerca as minhas meias com retângulos de cartolina e lentamente começa a escovar os sapatos, preparando-os para a graxa que viria na sequência.

Calculei que ele tivesse uns sessenta e cinco anos, embora aparentasse pelo menos uns dez a mais. Jaleco azul desbotado por sobre a camisa de gola puída. Unhas encardidas pela graxa de anos, dedos trêmulos.

Que dureza deve ser chegar a essa idade, depois de tanto trabalhar, sem conseguir encontrar o descanso merecido após anos intermináveis de batalha pela vida.

Quantos desses anos foram de alegria?, de divertimentos?, de encontros?, de boas amizades?

O pensamento me fez refletir sobre a minha própria situação. Na operação para colocação do marca passo e a suas prováveis implicações.

É interessante que quando você atravessa uma má fase, instantes de incertezas e falta de confiança, comuns em várias etapas da vida, parece que tudo adquire um tom pessimista. Você se sente afundando no mar. Quanto mais esforço você faz para retornar a superfície, mais é puxado para o fundo. Um moto contínuo do qual não se pode libertar.
Você não consegue achar a saída, que muitas vezes pode estar bem na frente de seus olhos.

Mas, e se hoje fosse o último dia da minha vida?

Dizem que um homem deve realizar três coisas antes de morrer. Escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho.

O livro (o ditado não especifica a qualidade literária necessária) eu já havia escrito ainda garoto. A única manifestação que recebi sobre ele, partiu da minha tia - angelical revisora da baboseira - que ao ver o número de personagens que eu matava no decorrer da história, previu que o livro terminaria por falta de personagens.

A questão de plantar uma árvore foi resolvida com um ressequido pinheiro, comprado no CEASA como árvore de natal, que encontrou na boa terra do sítio de minha mãe, um excelente berço para o seu desenvolvimento.

Quanto ao ter um filho, a minha resposta veio em dobro. Duas belas filhas que trazem todos os dias o sol a minha vida.

Pois bem, se tudo está feito, o que resta?

E se hoje fosse o último dia da minha vida?

Já que pagar as dívidas não me parecia uma proposta sensata, levando-se em conta a urgência da minha partida, detive-me a elaborar uma lista de sonhos a realizar nesse meu último dia.

Levantar mais um "papagaio" no banco e comprar aquele carro importado que sempre sonhei possuir.

Comprar uma lancha super potente e navegar rumo ao horizonte até que o fim da gasolina encontrasse a linha do horizonte.

Juntar os melhores amigos e sair em noite de farra e festa até o raiar do dia.

Fazer o gol no jogo do campeonato que nunca disputei, compor a música que nunca cantei, beijar a mulher que nunca conheci...

Toc, toc, toc.

-Dotô?

Toc, toc, toc.

-Dotô?

A batida da escova de sapato na caixa do engraxate interrompe os meus pensamentos.

-"Desculpa, dotô. Não queria incomodar mas tá pronto!"

-" O dotô tava viajando?"

Estendo-lhe uma nota de 10 e mando guardar o troco.

"É, meu amigo. Uma viagem que já devia ter feito faz tempo!"

A resposta estava clara.

Se hoje fosse o último dia da minha vida, voltaria para o escritório para acertar todos os problemas do dia. Com calma, equilíbrio e serenidade.
Voltaria mais cedo pra casa e ficaria junto da minha mulher e das minhas filhas. Com muito amor e alegria.

Faria tudo igual ao que sempre fiz. Porque vivi a vida que quis viver, lutei as lutas que eu quis lutar, amei as pessoas que eu quis amar.

O mais importante para se fazer em todos os dias de sua vida é ser feliz. E o amanhã, ora o amanhã.... sempre existe.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Um telefonema na madrugada

Celso Pinheiro de Oliveira


No alto do prédio do banco, as lâmpadas do painel eletrônico indicavam 02h37minhs daquela madrugada fria e garoenta.

Da janela de seu apartamento, Fernando tinha uma nítida visão do painel, que insistia em alternar o passar dos minutos com a lembrança da temperatura.

11:32hs - 16º, 12:03 - 15º, 1:21hs - 15º, 2:05hs -14º. Tempo e temperatura regendo a sua insônia, mais uma noite.

Tateando pela sala as escuras, dirige-se a sua poltrona favorita. Na mesinha de canto, procura espaço no cinzeiro lotado, para apagar o cigarro que já lhe queimava os dedos.

Desliga a televisão fazendo sumir o chiado irritante do canal fora do ar. Agora, o silêncio era absoluto. Pouco a pouco seus ouvidos vão se acostumando ao silêncio, fazendo com que a percepção para os pequenos ruídos da casa fosse ampliada a máxima potência.

Conseguia ouvir claramente o tremelique ocasional da geladeira (como se o motor estivesse "pegando" no tranco), barulho do elevador sendo acionado por algum vizinho recém chegado, a descarga do vaso sanitário do inquilino do andar de cima - um bom exemplo de uma bexiga constante e notívaga.

O pensamento de desistir da espera e ir para o quarto, em busca do repouso que seu corpo tanto pedia, veio novamente. O telefone não vai tocar, ela não irá ligar - pensa -. Para que prolongar esse sofrimento?

Mas, ontem, ele havia tocado. Por essas mesmas horas ele havia tocado. E Fernando pode ouvir a voz que já não ouvia há mais de três meses.

-Alo....
-Fê, sou eu, Melissa. Te acordei?

Apresentação desnecessária. Aquela maneira de chamá-lo era absolutamente única. Fernando sentiu uma descarga elétrica atravessando o seu corpo, que entrou em estado de alerta total.

Tentando recobrar a calma, responde fingindo uma naturalidade não existente.

- Não, não acordou não. Estava revisando um planejamento que tenho que apresentar amanhã. Pode falar. Está tudo bem com você?

- Não está nada bem não... - A voz de Melissa estava "pastosa", aflita, como se ela tivesse chorado ou bebido- E, sabe porque não está nada bem? Porque descobri que sou uma idiota, uma maluca, que larguei o melhor homem do mundo.

- Como assim?

- Você, seu tolo. Abandonei você, a única pessoa que sempre me amou, que sempre me entendeu!

- Melissa, o que está acontecendo? Porque isso agora, depois de três meses? Você desapareceu e sabe que essa não foi a primeira vez. Aliás, me pareceu bem consciente quando foi embora. Disse que eu te sufocava, que não aguentava mais a nossa rotina, que tinha grandes planos para a sua vida...

- Errei feio, né Fê? Eu não sei onde estava com a cabeça... As vezes até parece que uma outra pessoa toma conta de mim, sei lá, quando vejo já fiz a burrada.

- Pois é, Melissa, só que isso não é legal, a gente se machuca.

- Eu sei Fê, eu sei o quanto te fiz sofrer, quanto te magoei. Mas eu também estou sofrendo muito e acredito que esse sofrimento me amadureceu, me fez ver tudo de outra maneira. Entendi que ninguém consegue ser feliz se não tiver ao lado alguém que a gente realmente ame, um parceiro que nos apoie e proteja.

-Eu tentei ser essa pessoa, Melissa. Sempre procurei te amar e proteger com todas as minhas forças.

- Sei disso... estou te pedindo perdão mais uma vez... Preciso que você me perdoe e me dê uma outra chance. Tudo será diferente...

- Você disse isso das outras vezes. Estamos sempre recomeçando. Depois, você vai embora e sou eu que fico muito mal.

- Isso nunca mais vai acontecer Fê, eu te prometo. Só preciso que você confie em mim uma última vez. Juro que farei de você um homem muito feliz.

- Eu não sei...

- Vamos combinar uma coisa? Vamos marcar um encontro. Quero que você olhe nos meus olhos e sinta como eu mudei. Que posso ser a mulher que você sempre sonhou e merece. Só mais uma chance, Fê. A última, eu te prometo. Posso te ligar amanhã para acertarmos o encontro?

- Olha, Melissa, eu acho que é melhor....

- Obrigado, meu amor. Você não vai se arrepender. Agora vai dormir e sonhe comigo. Eu também vou sonhar com você. Fê, eu te amo, viu? Um beijo grande.

Fernando ouve Melissa cortar a ligação sem que tivesse tempo de dar a sua resposta.
Mais uma vez ela. Outra vez a história se repetindo.

Os cacos do seu coração nem bem haviam colado e lá estava ela, abalando o frágil equilíbrio conseguido nesses três meses de ausência.
As idas e vindas de Melissa, os telefonemas na madrugada, os perdões e arrependimentos, tudo de volta. E como sempre, a solidão e o abandono como recompensa.
Ele sabia que precisava de ajuda ou sucumbiria novamente a sua presença, aos seus apelos. Como em todas às vezes anteriores.

O som do portão da garagem do prédio sendo aberto trouxe Fernando de volta à realidade. O relógio do banco marcava 02h50min. A essa hora, provavelmente, Melissa não iria mais ligar.
Mas como o improvável, por molecagem ou pirraça, sempre teima em acontecer, a campainha do telefone dispara, cortando o silêncio da noite como uma faca afiada.

Fernando permanece imóvel, tentando controlar cada músculo do seu corpo. Sua cabeça girava, girava. Todas as emoções misturadas em um conflito angustiante.

O telefone toca novamente. Fernando sente suas forças esvaindo, não vai resistir.
Puxa o telefone da base e, antes que atendesse a ligação, sente alguém tomando suavemente o telefone da sua mão.

- Alô.

- Ah, acho que a ligação caiu errado. Eu estava ligando para o telefone do Fernando. Desculpa incomodar essa hora da noite.

- Você não ligou errado não, Melissa.

- Mas... quem está falando?

- Sou eu, a Clara. Nos conhecemos há uns dois anos atrás, em uma festa de fim de ano do escritório. Sou a advogada que trabalha com o Fernando.

- Clara? Acho que estou me lembrando de você. Mas, o que você está fazendo na casa do Fernando a essa hora?

- Melissa, você vai me desculpar, não querendo ser indelicada, mas acho que isso não é mais da sua conta, não é?

- Mas como não? Eu sou a mulher dele. Tenho todo o direito de saber.

- Você foi a mulher dele. Agora você é só uma lembrança, sofrida sim, mas apenas uma lembrança. Nós estamos juntos agora e tenho certeza que farei o Fernando muito feliz.

- Mas isso é um absurdo! Me chama o Fernando... quero falar com o Fernando!

- Melissa, o Fernando está aqui ao meu lado, ouvindo toda a nossa conversa. Já estávamos dormindo e você nos acordou. Vá dormir você também e, por favor, não nos incomode mais.

Clara desliga o telefone e retira o fio da tomada.
Carinhosamente abraça Fernando e seguem juntos para o quarto.
Para ele, uma nova vida tinha iniciado.

quarta-feira, 10 de março de 2010

A partida

Celso Pinheiro de Oliveira

O porto de Gênova estava um verdadeiro caos naquele começo de outono de 1948.
Os preparativos para a partida do navio faziam com que passageiros, tripulantes, malas e cargas, desenvolvessem um traçado alucinante, como um enorme balé enlouquecido.

À distância, sentado sobre algumas caixas que haviam sido desembarcadas, Giuseppe observava com olhos esquecidos de quem havia deixado ali o corpo para que o pensamento pudesse voar livre.

Capannori havia ficado para trás. Suas ruas estreitas de pedras, seus amigos, sua família. Os passeios com Maria á sombra do aqueduto, os planos e promessas.
Ainda podia sentir o abraço apertado da sua mãe se despedindo. Apertado como se ela quisesse deixar um pedaço do seu corpo colado no seu, uma imaginária proteção para a longa viagem que iria realizar.

Notou nos olhos de sua mãe um marejar que a todo custo ela tentava esconder.
Seu pai trata logo de apressar a despedida. Um abraço rápido e os conselhos finais:
“Vai, filho. O caminho é longo até Gênova e o navio não irá esperar por você. Tome cuidado e lembre-se de todos os conselhos que esse seu velho pai te deu. No Brasil, seu tio Pietro vai te buscar no porto. Vai tranquilo, tudo dará certo".

Brasil? Ele preferia os Estados Unidos, país grande, desenvolvido. Mas os vistos de imigração eram impossíveis de serem conseguidos. Restou o Brasil. Uma carta do tio Pietro prometendo trabalho - em seu pequeno armazém em São Paulo - viabilizou a liberação do seu visto. De lá quem sabe não seria mais fácil chegar a América?
Ah, América! Lá sim era a terra do dinheiro. Rico, poderia mandar muito dinheiro para a sua família. As necessidades e o sofrimento iriam acabar. O Brasil seria só uma escala nessa sua viagem.

A saída de casa, um último adeus. Papà, mamma e seus três irmãos - Carlo, Giovanni e a pequena Rosa, que com seus cinco anos de idade, soluçava no colo da mãe.
Giuseppe apressou o passo. Tinha que ver a Maria, que o aguardava no caminho, perto da estação de trem.

Lá estava ela, com seus cabelos castanhos encaracolados flutuando com a leve brisa que havia.
Ele sentiu seu coração pular que nem cabrito montês ao apertá-la contra seu corpo. Beijos misturados com lágrimas, uma angústia de falar tudo, não deixar nada esquecido.
“Giuseppe, você tem certeza que tem que ir? Será que juntos, trabalhando muito, não conseguimos fazer nossa vida aqui mesmo?"
“Mas, como meu amor? Você sabe que isso é impossível. Trabalhar aonde? A vingança dos alemães, por perderem a guerra, foi destruir tudo. Nossos campos, plantações, até nossas oliveiras derrubaram! O pouco que sobrou os bombardeios americanos se incumbiram de acabar".
“Nossas fábricas trabalham com apenas trinta por cento da produção. Não há trabalho para os que ficaram e para todos os soldados que voltaram da guerra!"
“Você está certo, Giuseppe. Eu quero que você nunca se esqueça de uma coisa... Eu sou e sempre serei sua. Não importa quanto tempo demore, eu vou estar aqui te esperando! Promete que você não vai me esquecer...".
“Eu te prometo, vou voltar. Será aqui que iremos construir nossa família, nossos filhos. Eu vou voltar!".

O apito da chaminé do Dezirade resgata Giuseppe dos seus pensamentos.
Dezirade? Isso era nome para um navio?

Pegando sua mala velha de papelão, toda amarrada com corda para resistir à viagem, se junta a imensa fila que subia para o navio. Na sua grande maioria, jovens como ele, que agora se viam forçados a abandonar a sua pátria em busca da sobrevivência, deixando uma Itália destruída e com fome, fruto da ilusão do fascismo de Benito Mussolini, que havia prometido um país grande e unido.
Os horrores da guerra estavam gravados em sua mente. A morte de Don Aldo Mei e o fuzilamento de mais de quinhentas pessoas, pelos alemães da SS, no vilarejo de Sant'Anna em Lucca, ainda faziam parte das suas noites de insônias. Aos vinte e sete anos tinha a sensação de já ter vivido cinquenta.

Acomodando-se em um canto do convés, Giuseppe espera a partida do navio. Sente o peito apertado, a boca seca. Uma sensação de angústia tomando conta de seu corpo.
Para ele era como se estivesse entrando em um túnel escuro, sem saber quando iria sair e o que iria encontrar. Todo o peso da sua decisão de partir havia se transformado na grande dúvida daquele momento.
Fecha os olhos e tenta guardar os últimos sons e perfumes da sua terra. O badalar do sino da igreja de San Gennaro, o perfume das oliveiras e vinhedos, o sabor da zuppa di farro da sua mãe. Quase pode sentir o gosto do feijão coberto pelo mais saboroso azeite do mundo.

No caís, as últimas amarras são soltas e vagarosamente o navio começa a se afastar.
Acenos e lágrimas são trocados por quem fica e por quem parte.
As pessoas e o caís vão diminuindo, cada vez mais, de encontro com o horizonte.
Mas as vistas e pensamentos de Giuseppe continuam longe. Estão nos campos da Toscana, na sua pequena Capannori, comuna de Lucca.

Uma lágrima, até então contida, escorre por sua face. Única testemunha de uma despedida que nunca terá fim.

"Eu voltarei, eu juro que voltarei!"

Minha avó agora é velha

Patrícia Diguê


Quando nasci, minha avó já era velha. Eu com zero ano e ela com seus cinquenta e poucos. Ainda lembro que, lá pelos meus seis, sete anos, reparava em suas mãos manchadas no fogão, nos cabelos grisalhos e nas rugas do rosto e da boca. Ela já era meio gordinha também.

Puro engano de um olhar infantil. Passados cerca de 30 anos, agora sim a descobri realmente velha. E foi assustador, me provocando tristeza (um pouco de raiva também), pena e profundos questionamentos sobre o sentido da vida.

Havia talvez uns dois anos que não a via. Já quase aos 80 e teimosa que só decidiu se mudar para outro estado, Rio Grande do Norte, longe de seus familiares em São Paulo. Construiu casa idêntica por aquelas terras (geminada, com um quarto em cada extremidade e cozinha e sala conjugadas). É possível andar no escuro em qualquer uma de suas casas. Todas iguais e com os mesmos móveis de décadas.

Após as aventuras por aquelas bandas e eternamente insatisfeita, outra mudança. Desta vez, Bahia. Tudo na companhia do anjo do meu avozinho, pobre coitado. Até que, como diz minha mãe, a “porca torceu o rabo”, ou seja, tiveram mesmo que pedir ajuda. Doentes e sozinhos, apelaram para as duas filhas, que prontamente foram buscá-los e os alojaram nas proximidades.

Neste dia, ao chegar em casa, levei o susto. Ela não era mais a avó que, apesar das rugas e manchas, fazia comida para os netos, ia ao supermercado, limpava a casa e costurava.

Agora seu olhar estava longe, o corpo esquálido e murcho, sem curvas nem mesmo na barriga. Os cabelos já haviam passado do branco para o amarelo, cor de sujo. O cheiro era ruim, o hálito também. Lembrei de Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Marques – no final da história, quando os protagonistas finalmente se reencontram sentem o cheiro da velhice.

Pode parecer duro, mas quando ficamos muito velhos cheiramos a coisa degradada, a alguma coisa descascando. A pele não tem mais brilho, é seca e ruim de tocar. Os cabelos se endurecem e o olhar afasta em vez de atrair. O corpo se arrasta.

Minha avó tem dificuldade para sentar, para levantar, para subir escadas. Não faz mais nada em casa. Suas manias ficaram piores e agora faz até travessuras de criança. Precisa de ajuda para ir ao banheiro e tomar banho. Não sabe muito bem que dia está, mas vê na televisão que o presidente é o Lula e morre de raiva.

Tudo isso me fez constatar que a vida toda estive errada sobre ela ser velha. Além desta descoberta, fiz uma outra, o mundo só se importa e presta atenção pelo que é novo e radiante. Observo minha sobrinha de três anos em meio aos parentes na sala. Qualquer gesto dela enche os outros de curiosidade.

Portanto, somos isso, corpos em constante decomposição e facilmente substituíveis. Já que todos apodreceremos, para que brigar tanto? O melhor caminho é amar as pessoas como se não houvesse amanhã, parafraseando Renato Russo – aquele cantor da época em que eu ainda nem pensava nestas coisas...

O alívio da canjica

Patricia Diguê


Alguém pode me ajudar na angústia de estar sempre em falta? Hoje esta idéia me atormentou. Percebi que não dou mesmo conta deste triturador de carne que é a vida, como define bem um colega jornalista. “Não adianta, a gente entra no moedor de carne e não consegue fazer mais nada”, filosofa ele sempre que me vê entre lamúrias existenciais.

É uma pesada culpa que me persegue em todo canto, mesmo que fuja para longe. Aliás, fugir piora tudo, porque a falta se amplifica. Tem a mãe que reivindica uma visita. “O que custa dar uma passadinha aqui de vez em quando?”. Tem a avó que já está bem velhinha e em cujo túmulo com certeza vou chorar de tanta culpa por não ter ido vê-la mais vezes. “Você é ocupada né?”. Também tem a sobrinha: “Tia, senta aqui e assiste desenho comigo!”. Sento 10 minutos: “O que são 10 minutos?”. Aí chego atrasada no trabalho, nem olho direito para os colegas: “Pô, e aquela cerveja?”. Percebo que com alguns não troco uma palavra há meses, mesmo vendo todo dia. “Ficou metida, não fala com os pobres?”. E o MSN que não entro, as mensagens do Orkut que não respondo, o blog que não atualizo, os telefonemas que ficam para depois? E os l ivros e revistas não lidos, as fotografias sem organizar. A lista continua: amigos de infância e o resto da família. O vizinho então? A empregada que só ouve bom dia e tchau. O filho do amigo que já cresceu e nem fralda dei, a amiga que ficou grávida e nem barriga vi. Os aniversários, batizados, casamentos, chás, bodas que faltei. “Você perdeu o bolo!”. As datas que esqueço e disfarço. Os presentes que não dei. As baladas que recusei. De tanto me tentar presente, me sinto sempre ausente, negligente, indiferente, inexistente, indolente...

Onde entra a canjica? Acontece que também carrego culpa por não cozinhar para as pessoas queridas, como manda o figurino. Não faço bolo de chocolate para os irmãos, nem almoço de fim de semana ou um sopão nas noites frias. Então hoje tomei uma decisão. Resolvi cozinhar uma canjica. Perdi alguns minutos no supermercado. Na hora do almoço, corri para o Compre Bem. Deu um alívio danado. Estava tudo lá na sacola: cravo, canela e leite condensado.

Descobri que os benditos grãozinhos precisam ficar de molho de um dia para outro. Tudo bem. Deixei-os na água como explicam no pacote. Devido às altas horas coloquei um bilhete na geladeira para que o primeiro que acordar coloque a canjica no fogo, aí é só misturar os outros ingredientes. Amanhã de manhã perco uma horinha, chego de novo atrasada, mas a canjica sai.

Se esta crônica levar alegria ou servir de alívio para meia dúzia de amigos, já estou contente. Serão menos meia dúzia para visitar.

Tristeza e globalização

Patrícia Diguê


Ando meio triste estes dias, como todo mundo às vezes fica triste. O problema é que encasquetei com a raiva que ao mesmo tempo sentia por estar triste e fiquei tentando entender o porquê. Pensei tanto que até esqueci por que mesmo estava triste. Mas o problema é que fiquei ainda mais revoltada com a conclusão que cheguei.

Se não bastassem todas as obrigações que a vida nos impõe, a gente ainda precisa mostrar que é feliz. Esta coisa virou uma obrigação mesmo. Apenas sorrir está na moda. Tristeza é demodé. Aí, fica todo mundo perdido, sem saber quem realmente está triste e precisa de ajuda. Porque quem está triste de verdade tem medo de dizer e pedir socorro. O que iam pensar? “Oi, tudo bem? Tudo bem.”

Hoje, no início da noite, estava realmente triste, parecia que até ia chorar, credo! Aí chegou o chefe (um dos) e tive que abrir um sorrisão, daqueles super espontâneos, sabe? Até saiu um som do sorriso. Outro dia estava p. da vida com não lembro o quê e, como de costume, chega alguém: “Melhora esta cara”. Ou então: “Passa um batom”. Eles são os fiscais desta lei velada de irradiar bem-estar 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Fiquei pensando por que olhos caídos e lágrimas são tão discriminados? Afinal, como defendeu com bons argumentos Darwin, algumas emoções (incluindo a tristeza) são inatas dos seres humanos. (Traduzindo: certas emoções são universais, e não produtos da cultura. Ele conseguiu provar isso basicamente mostrando que as reações em relação a certos sentimentos são idênticas aqui e na Conchinchina - afinal, este lugar existe?)

Deveriam inventar a cota de tristeza. Pronto, você tem direito de ficar triste 30 dias em um ano, por exemplo. Poderiam até criar uma licença-tristeza. Afinal, não é nada fácil sorrir nestes dias. Proporei isso às centrais sindicais.

Chorar em público então... Isso é terminantemente proibido. Só no banheiro e olhe lá. Trate de limpar esta cara, jogar água gelada e passa um pózinho.

Além de fora de moda, ficar triste gera culpa. Uma culpa globalizada.

Como posso ficar triste enquanto há centenas de desabrigados em São Paulo por causa da chuva; outros cento e tantos mortos no Iraque; milhões de famintos pelo mundo; mulheres sendo apedrejadas no Oriente Médio; outros milhões desempregados; o urso panda em extinção; gente morrendo em queda de avião; meu avô lá na esquina sofrendo de Alzheimer; zilhões com doenças terminais; minha amiga se divorciando; crianças pedindo dinheiro nas ruas; velhos caçando latinhas nos lixos; gente dormindo embaixo de jornal; filho matando pai; menino queimando índio. E o desmatamento? E o aquecimento? E o descaramento? Egoísmo, cinismo, banditismo! Malandragem, lavagem, galinhagem! Guerra, sem-terra, favela!

Por que mesmo eu estava triste?
Celular calibre 38



Patrícia Diguê



Tenho uma amiga que apaga os números dos celulares dos ex (namorados, ficantes, namoridos e outras aberrações) imediatamente após a confirmação de rompimento. Com isso, não corre o risco de ligar para nenhum deles quando tiver insônia ou estiver embriagada no boteco. Além do mais, isso também serve de vingança em caso de algum deles resolver telefonar. “Quem tá falando? Ah, desculpe, não tenho mais o seu número”. Realmente, este aparelhinho é uma verdadeira arma pelas madrugadas afora, e, assim como as de verdade, podem fazer grandes estragos.

- Alô (zzzzzzzz)!

- Oi, tudo bem? Te acordei, né?

- Que horas são?

- Sete horas.

- Que dia é hoje?

- Segunda-feira. Desculpe, liguei porque achei que você não fosse atender...

- Mas eu deixo o celular do lado da cama pra despertar. Olha, tô morrendo de saudades de você.

- Eu também tô morrendo de saudades de você. Desculpe, só queria deixar a ligação registrada pra você se lembrar de mim quando acordar, tinha certeza que não ia atender.

- Eu já penso em você todos os dias quando acordo...

- Eu também penso em você todos os dias quando acordo...

- Onde você está?

- Naquele lugar que a gente passou, sabe?

- Ah... Acordou agora ou está virado? Tá tudo bem?

- Tô virado, vim de uma festa e ainda tô bebendo chopp. Mais uma vez, fiquei pensando em você, na minha paixão distante.

- Vem pra cá...

- Quem dera!

- Vem no feriado!

- Não posso.

- Por favor, não me liga mais não...

- O quê? Não tô escutando...

- Não me liga mais, por favor.

- Tá bom...

- Um beijo.

Entre as veias de São Paulo

Patrícia Diguê



Um mês em São Paulo. Entre as dezenas de características da Cidade e comportamentos dos paulistanos que me surpreendem (às vezes negativa, outras positivamente), o que mais me chama a atenção é a incrível capacidade que o pessoal tem para inventar formas de ganhar a vida. Quem por aqui já circula há muito tempo, talvez nem pare para reparar nestas coisas. Mas eu me espanto toda hora.
Numa das minhas voltas pra casa, num dos muitos dias chuvosos de São Paulo, me surpreendi com a entrada pela porta de trás do ônibus de um homem carregando um enorme saco. Mostrando contagioso bom humor, se pôs a botar saquinhos de Doritos nas mãos das pessoas. Até parecia promoção. "Doritos e pacotes de bolacha de chocolate, qualquer um R$ 1,00".
Espremendo-me no meio daquela gente cansada do dia todo de trabalho, achei uma maravilha o serviço de bordo. E comi feliz o salgadinho. Dali foi mais de uma hora de viagem, num trecho que normalmente levaria 20 minutos.
Fiquei olhando para o vendedor um tempão. E imaginando que aquele cara era muito mais esperto do que eu, infinitamente mais criativo e com uma inteligência emocional incalculavelmente mais desenvolvida. Sem falar, que não demonstrava qualquer indício de timidez, falando calmamente em meio àquele público todo. “E tá crocante”, comentou uma moça do meu lado, que também parecia bem feliz.
Outra garota, que estava antes da roleta, gritou e pediu dois. Foi nessa hora que notei que dentro dos ônibus há cesto de lixo, bem do lado do cobrador. Vi um homem jogando o saquinho vazio lá e fiquei contente de saber que a educação às vezes chega às camadas menos favorecidas (só às vezes, porque ontem uma garotinha jogou um pacotinho de bala pela janela do metrô – o saquinho deu um voo rasante na senhora de trás, que ficou sem entender de onde havia partido tal ameaça).
A complacência dos cobradores em relação a esses lutadores da vida também é admirável. Parece existir uma condescendência velada em relação a essas milhares de pessoas que penetram em pequenas frestas do jogo social a fim de levar comida todos os dias pra casa. É assim em relação aos camelôs, por exemplo, e vendedores ambulantes em todo o canto.
Bom, em se falando de criatividade, não há concorrência para os camelôs. Eles trocam de produtos conforme a necessidade do cliente (vendendo guarda-chuva quando está chovendo, por exemplo), mudam de local conforme o movimento, driblam a fiscalização etc.
Mas foi outro novo “negócio” que também me encantou pela criatividade. Nas esquinas de quase todos os pontos de ônibus movimentados, você encontra uma barraquinha de café da manhã. São a maioria mulheres, que trazem, em um carrinho de feira, garrafas térmicas com leite e café, e também pães e bolos caseiros. As bancas ficam lotadas.
Comentei tudo isso com uma amiga, que disse que não se trata de novidade. “Você nunca tinha visto? Nossa, é normal”.
Não, não é normal não. Só pensei, pra não contrariar sua visão viciada de achar que isso tudo “é assim mesmo”. Pessoas se virando, vendendo tudo o que você pode imaginar pelas ruas - de abacaxi cortado a cadarço, de lenços a isqueiros, de trufas a óculos de sol -, é sinônimo de uma sociedade doente. Onde as pessoas não têm acesso ao mercado formal de trabalho e se encontram abandonadas pelo poder público. Que, por tudo o que a gente já sabe, não consegue se organizar para amparar quem precisa de apoio para levar uma vida minimamente digna.
Quando reflito sobre tudo isso, é inevitável lembrar dos lugares por onde passei nos últimos dois anos. Claro que a Europa possui uma democracia muito mais madura que a nossa, mas é triste constatar que em lugares como a Inglaterra, por exemplo, nem cachorros você vê abandonados na rua. Deixar uma criança desamparada então... soa surreal para eles, coisa de filme. Velhinhos beirando aos 80 anos debaixo de sol carregando cartazes de propaganda talvez virasse manchete de jornal por lá.
Que daqui pra frente, meu coração não fique anestesiado dentro desta grande selva, que continue como agora, se partindo em uma esquina e voltando a se encher na próxima. Assim é São Paulo.

terça-feira, 9 de março de 2010

A despedida

Celso Pinheiro de Oliveira


O porto de Gênova estava um verdadeiro caos naquele começo de outono de 1948.
Os preparativos para a partida do navio faziam com que passageiros, tripulantes, malas e cargas, desenvolvessem um traçado alucinante, como um enorme balé enlouquecido.

À distância, sentado sobre algumas caixas que haviam sido desembarcadas, Giuseppe observava com olhos esquecidos de quem havia deixado ali o corpo para que o pensamento pudesse voar livre.

Capannori havia ficado para trás. Suas ruas estreitas de pedras, seus amigos, sua família. Os passeios com Maria á sombra do acqueduto, os planos e promessas.
Ainda podia sentir o abraço apertado da sua mãe se despedindo. Apertado como se ela quisesse deixar um pedaço do seu corpo colado no seu, uma imaginária proteção para a longa viagem que iria realizar.

Notou nos olhos de sua mãe um marejar que a todo custo ela tentava esconder.
Seu pai trata logo de apressar a despedida. Um abraço rápido e os conselhos finais:
“Vai, filho. O caminho é longo até Gênova e o navio não irá esperar por você. Tome cuidado e lembre-se de todos os conselhos que esse seu velho pai te deu. No Brasil, seu tio Pietro vai te buscar no porto. Vai tranquilo, tudo dará certo".

Brasil? Ele preferia os Estados Unidos, país grande, desenvolvido. Mas os vistos de imigração eram impossíveis de serem conseguidos. Restou o Brasil. Uma carta do tio Pietro prometendo trabalho - em seu pequeno armazém em São Paulo - viabilizou a liberação do seu visto. De lá quem sabe não seria mais fácil chegar a América?
Ah, América! Lá sim era a terra do dinheiro. Rico, poderia mandar muito dinheiro para a sua família. As necessidades e o sofrimento iriam acabar. O Brasil seria só uma escala nessa sua viagem.

A saída de casa, um último adeus. Papà, mamma e seus três irmãos - Carlo, Giovanni e a pequena Rosa, que com seus cinco anos de idade, soluçava no colo da mãe.
Giuseppe apressou o passo. Tinha que ver a Maria, que o aguardava no caminho, perto da estação de trem.

Lá estava ela, com seus cabelos castanhos encaracolados flutuando com a leve brisa que havia.
Ele sentiu seu coração pular que nem cabrito montês ao apertá-la contra seu corpo. Beijos misturados com lágrimas, uma angústia de falar tudo, não deixar nada esquecido.
“Giuseppe, você tem certeza que tem que ir? Será que juntos, trabalhando muito, não conseguimos fazer nossa vida aqui mesmo?"
“Mas, como meu amor? Você sabe que isso é impossível. Trabalhar aonde? A vingança dos alemães, por perderem a guerra, foi destruir tudo. Nossos campos, plantações, até nossas oliveiras derrubaram! O pouco que sobrou os bombardeios americanos se incumbiram de acabar".
“Nossas fábricas trabalham com apenas trinta por cento da produção. Não há trabalho para os que ficaram e para todos os soldados que voltaram da guerra!"
“Você está certo, Giuseppe. Eu quero que você nunca se esqueça de uma coisa... Eu sou e sempre serei sua. Não importa quanto tempo demore, eu vou estar aqui te esperando! Promete que você não vai me esquecer...".
“Eu te prometo, vou voltar. Será aqui que iremos construir nossa família, nossos filhos. Eu vou voltar!".

O apito da chaminé do Dezirade resgata Giuseppe dos seus pensamentos.
Dezirade? Isso era nome para um navio?

Pegando sua mala velha de papelão, toda amarrada com corda para resistir à viagem, se junta a imensa fila que subia para o navio. Na sua grande maioria, jovens como ele, que agora se viam forçados a abandonar a sua pátria em busca da sobrevivência, deixando uma Itália destruída e com fome, fruto da ilusão do fascismo de Benito Mussolini, que havia prometido um país grande e unido.
Os horrores da guerra estavam gravados em sua mente. A morte de Don Aldo Mei e o fuzilamento de mais de quinhentas pessoas, pelos alemães da SS, na porta Sant'Anna em Lucca, ainda faziam parte das suas noites de insônias. Aos vinte e sete anos tinha a sensação de já ter vivido cinquenta.

Acomodando-se em um canto do convés, Giuseppe espera a partida do navio. Sente o peito apertado, a boca seca. Uma sensação de angústia tomando conta de seu corpo.
Para ele era como se estivesse entrando em um túnel escuro, sem saber quando iria sair e o que iria encontrar. Todo o peso da sua decisão de partir havia se transformado na grande dúvida daquele momento.
Fecha os olhos e tenta guardar os últimos sons e perfumes da sua terra. O badalar do sino da igreja de San Gennaro, o perfume das oliveiras e vinhedos, o sabor da zuppa di farro da sua mãe. Quase pode sentir o gosto do feijão coberto pelo mais saboroso azeite do mundo.

No caís, as últimas amarras são soltas e vagarosamente o navio começa a se afastar.
Acenos e lágrimas são trocados por quem fica e por quem parte.
As pessoas e o caís vão diminuindo, cada vez mais, de encontro com o horizonte.
Mas as vistas e pensamentos de Giuseppe continuam longe. Estão nos campos da Toscana, na sua pequena Capannori, comuna de Lucca.

Uma lágrima, até então contida, escorre por sua face. Única testemunha de uma despedida que nunca terá fim.

"Eu voltarei, eu juro que voltarei!"

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Agradecimento a uma inimiga

Patrícia Diguê


Já se vão uns cinco anos de convivência. Vinha resistindo escrever sobre você. Puro medo. Preferia te ignorar na ilusão de que assim você desaparecesse da minha vida. No começo achava que me livraria rápido de você. Era apenas mais uma pedra fácil de chutar. Mas você foi ficando, me irritando, me desesperando, insistindo em me acompanhar por onde quer que eu fuja. Tentei te enganar, tentei fugir, tentei te cansar e entender o porquê de tanta perseguição. A convivência não tem sido fácil. Posso dizer que é a mais complicada que já tive. Eu te odeio com todas as minhas forças, mas você não me deixa em paz. Sempre acho que já fiz de tudo para que você me deixe, mas aí você insiste em aparecer e me obriga a encontrar uma nova alternativa para que possamos continuar convivendo com um mínimo de sanidade. Às vezes me conformo com sua presença, às vezes choro de raiva. Mas , fazendo um balanço desses anos todos, tenho que reconhecer que preciso te agradecer e talvez reconheça ainda mais seu valor daqui a um tempo. Com certeza tomarei consciência da sua importância quando você não estiver mais por perto. Não acho que sentirei saudades, já seria demais, mas te entenderei melhor quando nossa relação doentia acabar e eu puder olhar tudo com distanciamento. É verdade que talvez você nunca me deixe, eu sei, preciso considerar esta possibilidade. Mas ainda assim tenho que te agradecer por me ensinar tanta coisa sobre mim mesma.

Obrigada por me mostrar que não sou a senhora da minha vida; que não sou um robô com botões de controle; que igual a todo mundo sou fraca; que não posso querer ser tudo; que não posso ignorar meus sofrimentos, porque eles se manifestarão de formas muito mais destruidoras no futuro. Obrigada por me ensinar a compreender quem sofre; que algumas pessoas são mais frágeis que as outras e que às vezes só precisam ser ouvidas; por mostrar ainda que a maioria das pessoas quer se esconder em uma máscara de infinita felicidade, mas que no fundo enfrentam terríveis fantasmas também. Obrigada ainda por me mostrar que a vida não e uma ciência exata, que remédio não cura doença da alma e que buscar a paz leva tempo. Agradeço ainda a me obrigar a ter paciência; a ver que transformações levam o tempo que elas necessitam e não o que a nossa razão impõe; e também que cada um tem um tempo diferente. Enfim, a lista de contribuições seria infinita. Você me fez reavaliar tudo que sou desde que nasci, tudo que fiz de bom e mau, o que vinha fazendo comigo até aqui, me obrigando a repensar rotas, a jogar máscaras fora, a não ter vergonha de chorar e a buscar uma verdade. Estou longe de chegar nela, mas certamente seria um ser humano menos sensível e vazio se você não tivesse aparecido em meu caminho, derrubando todas as minhas certezas e minhas defesas, me obrigando a me render às forcas que regem o mundo em vez de tentar mudá-lo. Obrigada, insônia, por me mostrar que não sou nada, apenas mais um ser humano atrás de caminhos para aliviar a dor de existir.

Eu odeio a minha mãe

Patrícia Diguê


Fico olhando a foto dela, bem dentro dos olhos, tentando imaginar o que deve ter passado na sua cabeça naquela noite de 16 de outubro de 1992. No retrato, ela parece perfeitamente normal e até feliz. “Eu odeio a minha mãe”. A frase de seu filho martela na minha cabeça enquanto escrutino a foto. “O mistério da mãe desaparecida” foi como ficou conhecido o caso nos jornais da Inglaterra. M. Perez saiu de casa naquela sexta-feira para nunca mais voltar, nem viva nem morta. Tinha 48 anos, estava divorciada e tinha dois filhos, A., de 17, e R., de 12. Psiquiatra renomada, especializada em epilepsia, deixou apenas um bilhete aos filhos dizendo, em linhas gerais, que havia falhado como mãe e mulher e que não conseguia corresponder as expectativas da família. Seu carro foi encontrado dias depois a mais de 300 quilômetros. A polícia não entendia por que alguém com a intenção de se suicidar teria dirigido para tão longe e, além disso, como teria sido tão bem sucedida no ocultamento do próprio corpo. Por isso, acreditaram durante meses que ela estava viva. Mas, diante da falta de qualquer pista, M. foi considerada morta. Uma morta sem velório nem enterro, cujo fantasma atormenta a vida de A. e R. até hoje. Para todo mundo, eles dizem que os pais morreram quando eram pequenos. O pai, divorciado da mãe já havia 12 anos, morava no Chile, e morreu poucos anos depois. À época, ele estava doente e impossibilitado de viajar para a Inglaterra para ficar com os filhos. O avô é que veio. Durante muito tempo, os meninos ficaram assim, de mão em mão, de casa em casa. R. teve sérios problemas com drogas na adolescência e hoje sofre de esquizofrenia – carrega caixas de remédios por onde vai -, não consegue tocar projetos a longo prazo, nem assumir compromissos. É como se ele tivesse parado nos 12 anos, sem encarar responsabilidades, sempre dependendo dos cuidados do irmão mais velho, que sem querer acabou se tornando pai e mãe dele depois da tragédia. Não é preciso muito tempo de conversa para que logo revelem o que de verdade ocorreu com a mãe, mas não mantêm o assunto por muito tempo. A. é alcoólatra, sem falar na dependência do cigarro e uso de outras drogas. Tem emprego, amigos, a casa que a família deixou, mas é mentalmente fraco. “Bebo pra esquecer a realidade, aí eu durmo”, tenta explicar. Coleciona histórias tragicômicas sobre as incontáveis vezes que acordou em lugares sem saber onde estava. O discurso de que vai abandonar o álcool já não encontra qualquer credibilidade entre as pessoas que estão ao redor. Além da fuga na cerveja e na vodka, vive constantemente fazendo planos de mudar completamente de vida. Mas, na realidade, parece não ter forças para tomar qualquer iniciativa. Vive querendo fugir, dizem. “Vou comprar um terreno na Espanha e um pastor alemão”, conta. “Resolvi ir para o Japão, aprender a ser chef especializado em sushi”, sonha. Nas horas vagas, bebe. E, muitas vezes, tem crises de choro. E, sempre que bebe, diz que vai abandonar o emprego, o que já chegou a fazer, mas conseguiu reverter a situação após voltar à sobriedade. São pessoas doces, apesar disso, carentes e amorosas, sempre com um sorriso aberto e um bom humor contagiante. Mas quem os conhece sabe que a alegria esconde almas tristes e perdidas. A impressão é de que, inconscientemente, desejem morrer cedo. Na casa deles, algumas poucas fotografias em meio a latas vazias de cerveja mostram crianças felizes, inconscientes do que estava por vir.

Hoje encontrei A. Parecia feliz e saudável. Engordou. Voltava de um mercado com uma sacola cheia de comida. Um bom sinal, já que, quando embala nas noitadas, não se alimenta. Disse que não bebia havia sete dias e que, desta vez, estava decidido a abandonar o vício de verdade.

Sessão Privada

Patrícia Diguê


Sempre me gabei de ser daquelas mulheres que vão ao cinema sozinhas. Isso, pra falar a verdade, ocorreu só uma meia dúzia de vezes, normalmente quando quero muito assistir a um filme e, ao consultar a lista de possíveis companhias na agenda do celular, acabo preferindo abraçar a pipoca e a coca cola no escurinho. Ontem foi mais ou menos assim. Quero dizer, nem estava tão interessada assim no filme e nem tinha tanta opção assim no meu celular. Mas precisava mostrar pra mim mesma que ainda tenho forças para enfrentar o frio e a solidão. Logo ao sair de casa, deu vontade de voltar correndo. Além da temperatura não-convidativa pra largar as cobertas, ainda chovia e ventava. Já que havia tido tanto trabalho colocando uma coleção de blusas, segui firme e forte meu caminho. Após uma viagenzinha curta em um ônibus double deck lotado, lembrei que precisava providenci ar a minha companhia. Não apeteceu a pipoca, nem os sanduíches gelados do supermercado. Aí que para me manter fiel à minha dieta especial de muita gordura trans dos últimos meses, resolvi por um número quatro do Burger King, um cheese bacon com gosto de óleo saturado (mais batatas fritas e refrigerante, claro). Ansiosa pra mostrar como eu sou independente e bem resolvida, tratei de entrar logo na sala. Pensei: “Sem essa de esperar ficar escuro pra ninguém ver que estou sozinha, afinal, dificilmente eu encontraria alguém conhecido aqui mesmo e, se isso miraculosamente acontecesse, tenho a velha desculpa de que não sou daqui”. Respirei fundo e entrei na sala à meia-luz. Pra minha surpresa, não havia viv'alma no lugar. Olhei as horas e percebi que estava meia hora adiantada. Sentei confortavelmente na poltrona marcada (nos cinemas de Londres, você compra o ingresso com o número da poltrona) e até aproveitei pra botar os pés na cadeira da frente. Olhei para o s lados e saquei meu sandubão. Como tinha escondido ele na bolsa, com refrigerante e tudo, já era esperado que tudo tivesse se derramado lá dentro. A tarefa de tirar todas as tralhas, secar com os guardanapos do Burger King e me preparar para comer tinham pelo menos feito o tempo passar mais rápido. Mas ainda faltavam 15 minutos e continuava como a única expectadora. Entre uma música e outra da estação de rádio, podia ouvir o farfalhar do saco de batatas e até minha mastigação. De repente, a música cessou e os comerciais (uns 10 pelo menos) começaram. Foi então que percebi que, literal e tragicamente, assistiria ao filme completamente sozinha, nem daria pra disfarçar que estava com a turma do lado. Um certo pânico me bateu. Pensei em descer e dizer para os funcionários: “Olha, deixa pra lá, não foi uma boa ideia eu vir ao cinema às seis e quinze da tarde em uma terça-feira com previsão de nevasca”. Desisti. E comecei a sentir peso na consciência. Toda aquela parafernália gastando energia e gerando quilos de gás carbônico só para o meu bel prazer. Sem falar que ainda tinha pago meia-entrada. Enquanto esses pensamentos iam me constrangendo, o filme começa. E então entra uma moça. O que me aliviou, mas em seguida aparece sua amiga e fiquei imaginando elas me achando uma louca com a bolsa aberta cheia de guardanapos e um monte de batata frita na boca.

Comedinha romântica. Aquela atriz que fez “Diário de Bridget Jones” - que não estou com vontade de escrever o nome porque é impronunciável e insoletrável - é uma executiva de Miami atrás de subir na carreira que acaba indo parar em uma cidadezinha do interior, conhece um grande amor, se apaixona e se casa. Até agora não sei por que entrei para assistir a esse filme e, pior, ainda consegui chorar. Chorei especialmente na hora em que ela ganha de presente de Natal da secretária (snif) um caderno de anotações com algumas fotos dela mesma coladas. Aí a secretária aponta pra uma delas e diz: “Nesta você parece que está carregando todos os problemas do mundo nas suas costas”. Snif!

Na saída, um coroa puxa conversa enquanto eu esperava a chuva passar embaixo da marquise. “Acabou de ver um filme?”, perguntou obviamente. Achou que eu era da Bulgária. Contou que é sul-africano e que já tinha ido ao Brasil, passando por três estados. Brasília achou sem graça, São Paulo, muito grande, e Rio, “Yeah, Rio!”. A rápida conversa progrediu para a comparação entre as economias dos dois países (Brasil X África do Sul). E, comprovando que o marketing lulista de rei do petróleo está tendo resultado, ele, como muitas pessoas que tenho encontrado ultimamente, me diz: “Mas lá a economia está melhorando não é? Muito melhor que na África do Sul, está na hora de você voltar, não?”. Como demorei pra responder e fiquei olhando pra ele com cara de interrogação, ele ri, me deseja boa noite e entra no pub. Eu fico ali alguns segundos, prostrada, olhando para o nada. E de novo na companhia do frio, do vento, da chuva e da solidão, volto para casa, pelo menos agora sonhando com um lindo príncipe encantado que com certeza me espera calmamente em alguma cidadezinha do interior de algum lugar do mundo.

Mas eu te amava

Patrícia Diguê



Quando te conheci, seus cabelos cheiravam a escapamento e seu perfume era o do desodorante mais barato da farmácia da esquina.

Mas eu te amava.

Quando te conheci, nosso ninho de amor era um colchão já ondulado pela idade avançada e nossa trilha sonora vinha de fitas cassete gravadas de discos de vinil.

Mas eu te amava.

Caetano, Cult, U2 estavam todos na mesma seleção após longas horas em frente ao aparelho de som.

Suas camisetas muitas vezes cheiravam a gaveta e você fazia a barba com espuma feita de sabonete Lux.

Mas eu te amava.

Lembro que te amava mesmo quando usava uma zorba sem elástico, uma camiseta com furo ou uma meia trocada.

Quando te conheci, as flores que ganhava vinham do fundo do quintal e comer pizza fora era em ocasiões especiais.

Mas eu te amava.

Quando te conheci, você usava tênis, não sabia dar nó em gravata nem limpar direito a unha do pé.

Mas eu te amava.

Naquela época, seus cabelos batiam no ombro, seu peito cheirava a parafina e eu tinha que passar horas te esperando na praia.

Ainda assim, te amava

Te amava até com touca de banho cor-de-rosa, blusa do avesso ou calça um número maior.

Até quando esquecia as datas especiais, pechinchava cinquenta centavos ou alugava um filme repetido.

Naquela época, eu acabei concordando que não ter carro era descolado, que ir à praia com chuva podia ser interessante e que acampar era super confortável

Mas porque eu te amava.

Quando você contava a mesma história milhares de vezes, não ria da minha piada ou não levava a sério minha TPM, ainda assim eu te amava.

Quando te conheci, só te chamavam pelo primeiro nome, seus amigos chegavam sem avisar e no fim do ano você foi papai Noel.

Hoje, não te conheço mais. Mas, por favor, nunca se esqueça:

Eu te amava.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Quem dera te ver ao acordar

Patrícia Diguê


Hoje, ao abrir os olhos, desejei te encontrar depois da porta, com seu pratinho de comida assistindo a desenho animado. Por um instante, fechei os olhos e tinha certeza que ao sair do quarto toparia com seu sorriso aberto e olhos brilhantes de sinceridade infantil. Daria-te um beijo estalado na bochecha, te chamaria de “gostosa linda”, e, antes que pudesse escovar os dentes, você já começaria a despejar o relatório de tudo o que tinha acontecido naquela manhã.

Outra vez fechei os olhos e desejei que, talvez, a porta estivesse aberta. E você, sem entender porque alguém dorme quando já está claro, viria pulando na minha cama dizendo que já era dia. Aí eu pediria cinco minutinhos. E você contaria até cinco dizendo “Pronto, acorda”.

Abri os olhos e finalmente me convenci da impossibilidade de isso tudo acontecer. Puxei a cortina e vi árvores secas, janelas fechadas, pessoas encolhidas. Desejei cair em um sono profundo e só acordar quando pudesse sentir seu cheiro e beijar sua bochecha rosa. Aí me arrependi (pausa pras lágrimas)...

Aí me arrependi de ter ficado só 10 minutos com você na piscininha em vez de 20, de preferir assistir à TV ao brincar de cabana, de te deixar à noite, em vez de deitar do seu lado. Arrependi-me de toda a minha impaciência de adulto e senti raiva de não saber mais brincar.

Depois do arrependimento veio o medo. Medo de perder momentos tão importantes para sua vida. Medo de não estar quando você aprender a escrever uma frase inteira, de não estar do seu lado quando ganhar ovos de Páscoa, presente de aniversário ou descobrir que o papai Noel não existe.

Só espero ser perdoada, porque tudo que fazemos na vida, seja certo ou errado, no fundo é para um dia poder recompensar as pessoas que nos amam de verdade, aquelas que nunca esperam nada em troca, exceto um sorriso pela manhã.

A medida do logo

Patrícia Diguê


Uma telegráfica mensagem um ano e meio depois emergiu os sentimentos há muito enterrados. Saudade, paixão, raiva e tristeza subiram como lava de vulcão. Andou como zumbi naquele dia tentando reconstruir todos aqueles intensos momentos que tanto havia se esforçado para dissipar. Lembrou que aquela tinha sido a última vez em que havia dado uma verdadeira chance para um novo amor. Lembrou que a história teve até trilha sonora e telefonemas na madrugada. Lembrou também que inconsequente e cegamente dirigiu quilômetros em troca de apenas dois dias e duas noites. E ainda que, como nos contos de fadas, não se sentiu cansada nem arrependida. Conseguiu com dificuldade colar os pedacinhos daquele fim de semana em que se sentiu verdadeiramente viva. Também se lembrou da despedida. Nenhuma lágrima ou tristeza. Apenas singelo tchau entre pessoas que logo se verão novamente. Esquecendo que “logo” está entre as mais subjetivas das palavras.

Quando a paixão tem data de validade

Patrícia Diguê


O cenário era uma praia paradisíaca no nordeste do Brasil. Enquanto a maioria dos seis ou oito passageiros da van se olhavam com timidez, ele desembestou a perguntar de tudo pra todo mundo e em instantes já davam risada como velhos amigos. Graças a isso, o percurso de mais de uma hora entre o aeroporto e o hotel ficou curto, passou despercebido. Na chegada, recepcionistas com coco gelado, sorrisos de boas-vindas e aquele sol brilhando... só faltaram dançarinas fazendo o ula-ula. Dava para esquecer fácil que se tratava de um congresso profissional e se imaginar em um daqueles filmes que o magnata americano decide passar um fim de semana logo ali, em uma praia exótica da América do Sul.

Nesse clima de ilha da fantasia, percebeu que aquele moço brilhava mais que as jacuzzis que pareciam sair da areia ou o mar que se juntava em um tom só com o céu. O sorriso aberto se abria para todos, mas o olhar de tom verde já havia escolhido uma direção. Trocaram algumas palavras, riram e se viraram as costas, em direção aos quartos de lados opostos. Na primeira tarde de palestras, resolveu nem aparecer. Foi esfriar a cabeça no mar. A aliança na mão direita lhe lembrando toda hora do que era certo. As fantasias lhe atormentando a cabeça naquele cenário perfeito, queimando os miolos mais que o sol de 40 graus.

À noite, jantaram juntos, falaram sobre sites de relacionamento, eleições, desemprego, e tentaram ainda descobrir o que faziam ali naquele resort de bacanas, sendo patrocinados por uma indústria situada a horas de voo de onde trabalhavam. Acabaram decidindo que tudo se tratava de uma conspiração patrocinada por uma grande corporação internacional. Saíram sem rumo pela pequena vila, beberam e riram mais. Mas ao terminar da noite, viraram as costas, em direções opostas. Ambos deitados em suas camas kingsize, de lençóis brancos e macios, tentaram se convencer do que era moral e certo. E assim adormeceram, fortes em suas convicções.

Ao fim do dia seguinte, trocas de telefones e emails de praxe e se disseram adeus. Nunca mais ouviram um do outro.

Agora o cenário era um jantar importante no interior de São Paulo. Sabiam já que se encontrariam. Um ano havia se passado. Mas o que para ela parecia uma segunda chance do destino, se transformou em água gelada goela abaixo. Desta vez, a aliança havia pulado para o outra mão. Engoliu, olhou discretamente para suas mãos e lhe cumprimentou polidamente. Mas a sensação semeada naquele congresso chato de industriais entediantes aflorou com efeito reboque e naquela noite não enxergavam muita coisa além de um ao outro. Para piorar, ainda naquela noite saberiam que viajariam juntos para o outro lado do mundo em breve.

Nos primeiros dias, longe de qualquer olhar de reprovação, deram vazão a todo ímpeto controlado. Confessaram sentimentos naquele ano que passou. Ela, um arrependimento por ter deixado uma possível grande paixão passar. Ele, a angústia por ter vestido a fantasia do personagem de um roteiro pré-programado.

Mas o conto tinha data de validade. Duas semanas. Já nas últimas noites, ela foi direto para o seu próprio quarto. No mundo real, não cabia aquele amor. E, na volta, no aeroporto, mais uma vez se deram as costas, e foram para suas cidades em direções opostas. Ele vive o sonho de um dia poder deixar o palco e aposentar sua máscara. Ela segue incessante pelo mundo na busca de uma nova grande historia de amor.

A caminho do transplante

Patrícia Diguê


Ela cruzou a minha vida a muitos pés de altura, em algum ponto do céu entre Brasília e São Paulo. Havia saído às 4 da madrugada de casa naquela terça-feira. Lá de um lugar chamado Picos, a cinco horas de Terezina, o aeroporto mais próximo. Era um dia importante. Após a conexão em Brasília, onde eu embarquei, o destino era um hospital de São Paulo. Lá, o filho de 11 anos, portador de Hepatite C, se submeteria a uma cirurgia de transplante de fígado, após longos cinco anos de espera. A doadora era ela mesma, a mãe. Em um voo de gente importante, bem vestida e perfumada, ela se destacava: de brincos prateados um pouco descascados, cabelos presos no alto com um presilha de plástico, sandálias baixas também de plástico, calça legging branca, bolsa também branca e uma espécie de blazer azul. “Faz frio lá?”, perguntou-me. “Em Picos, é calor, sem ventilador não dá pra dormir”.

Apesar da figura destoante dentro do avião, foi tratada com uma naturalidade politicamente correta que beirava à indiferença e quase desdém. Sua poltrona era a do meu lado. Concentrada em minha revista sobre boa forma, preferi ignorar, no começo, aquela senhora – mais tarde descobriria que ela tem 33 anos, só dois a mais que eu – que falava um português embaralhado e errado. Mas percebi que estava aflita, pois suspirava profundamente de quando em quando. O motivo era que o filho havia ficado na outra fileira, ao lado. Pensei em trocar de lugar com ele, mas não queria me sentar na poltrona do meio, preferia o corredor. O egoísmo predominou. Que bom que não mudei, no final das contas.

Na hora do serviço de bordo – uma massa em quantidade ínfima e um copo de bebida – fechei minha revista e resolvi saber mais sobre ela. O que uma mulher com aparência de retirante faz aqui? Ela mesma teria pago a passagem? “Meu filho tem uma doença, tem que fazer transplante”. Gelei. Mas mantive a prosa. Ela respondia tudo com naturalidade e inocência, às vezes até rindo, um riso baixo e envergonhado. A comida chegou e percebi que ela copiava cada movimento meu: abre a tampa do prato pronto, pega os talheres de plástico, abre o saquinho de queijo ralado... ops... ela não consegue abrir o sachê e me pede ajuda. A partir daí, viramos velhas amigas que não se viam há muito e precisavam colocar as fofocas em dia. Ela continuava respondendo tudo animada e tímida ao mesmo tempo, sem me encarar muito. Mas eu buscava seus olhos como numa tentativa inconsciente de absorver um pouco do que eles já haviam presenciado. Passei a imaginar Picos, que não tem nada, segundo ela, só uns morros. Tem praça, tem prefeitura e tem escola. O prefeito é o Chico Paraíba, que, como o nome já diz, não é do Piauí. Mas é um homem bom. “Ele fala com todo mundo, pobre ou rico. Eu fui falar com ele pra ajudar meu filho”.

José Alonso faz hemodiálise, toma diferentes remédios e às vezes vomita sangue. Foi outras vezes a São Paulo para fazer exames. Mas sempre com o pai, que é alcoólatra. Saiu dos Alcoólicos Anônimos, que frequentou por cinco anos, e agora voltou a tomar cachaça. “É muito problema”, justifica a mãe. “Homem é mais fraco, mulher enfrenta, eu vim no lugar dele”. Foi sua primeira viagem de avião. “Não deu medo, é até melhor que ônibus, porque não faz assim”, se balança (mas bem que, na hora da aterrissagem, pôs a mão no coração, não sei se por temer o pouso ou por ver o mar de concreto pela janelinha). Desembestou a falar. “Tenho uma sobrinha que foi para a Aparecida pagar promessa”. Contou que conheceu Natal, onde até andou de camelo. Casou-se aos 17 anos. “Com minha mãe era assim, namorou tem que casar”. A família de nove irmãos mora toda no mesmo lug ar. A mãe morreu (de enfarto). O pai é músico na banda da prefeitura. Além de José Alonso, um menino franzino de pele manchada e cara amarrada, tem uma filha de quatro anos. “Não quero ter mais filhos, sou ligada (as trompas)”. O marido se transformou em um problema tão grande quanto o filho doente e só trabalha de vez em quando. “Casamento é difícil”, lamenta.

Renda fixa, só a bolsa-família, de R$ 90,00 para cada filho. “Votei ni Lula, sempre voto nele, ele falou que vai aumentar o bolsa-família”, diz com brilho nos olhos. “Não votei no Alckmin porque, você sabe (me olha constrangida como se me ofendesse), ele nasceu em berço de ouro. O Lula não, ele sabe, já passou pelas coisas”. O problema no bolsa-família é a gambiarra. “Tem criança que não precisa e ganha”, afirma com revolta.

Passa o carrinho da bebida. Na dúvida entre coca-cola light, suco artificial e cerveja Xingu, pede água. O passageiro da janela olha de soslaio. Imaginei-o incomodado com o conversê. Acho que queria dormir, em vez de ficar ouvindo aquele sotaque forte, ininteligível às vezes. Esqueci da revista. A mãe a caminho do transplante me mostra a bíblia, mais surrada do que o livro mais velho que já vi na vida. Mostra ainda o nome e número do telefone do centro de apoio que a receberá na cidade mais rica do País. O papel é sujo e esgarçado. “Não posso perder este número”. A bíblia é leitura diária, mas ela não costuma ir à igreja. “Se Deus quiser, vai dar tudo certo’.

Por instinto, faço algumas anotações sobre tudo aquilo em um bloquinho de papel que me acompanha. Também por instinto, busco algo para presentear-lhe em minha bolsa. Mas não encontro nada útil, além de chaves, documentos e maquiagem usada. Nada à altura dela. Pensei em dinheiro. Mas desisti. Não queria correr o risco de envergonhá-la. Conclui que minha principal função naquele voo atrasado e lotado era lhe dar ouvidos e mostrar que não era melhor por estar com roupas mais caras e ter o cabelo tingido e escovado. Sentia uma mistura de pena, raiva e também culpa. Fiquei com vergonha de falar de mim, nem a idade contei. Se ela perguntasse, mentiria. Só dei nome e a cidade que morava. “Conheci uma menina em Natal parecida com você que também chamava Patrícia”, se surpreendeu, me olhando um pouco mais agora. A vida dura lhe deu mãos com calos, rugas precoces, pouco peso e baix a estatura (menos de um metro e meio, tenho certeza).

Preparando para aterrissar. Ainda sobre as nuvens, um raio de sol bate em seu colo e ela se alegra. “Tá vendo, vai estar calor”, tento tranquilizá-la.

Chegamos. São Paulo está cinzenta. Prometi ajudá-la a pegar a mala na esteira. Os dois me seguem pelo aeroporto imenso, cheio de gente apressada. Antes, uma parada no banheiro. Quando se depara com a torneira automática, se atrapalha e me pede ajuda novamente. Ao ouvi-la me chamando pelo nome, me comovo, mas ajo com naturalidade. “Deixa, ela fecha sozinha”. Ainda a auxilio a tirar o papel toalha para secar as mãos (por que diabos existem tantos equipamentos diferentes para uma tarefa tão simples como esta, reflito naquele momento). Ela parece contente. Eu mais ainda. Sinto-me premiada por tê-la tido como companheira de assento. Queria conversar mais. Pego o número do celular de José Alonso. “Ele ganhou do avô”, conta orgulhosa. Pretendo ligar em alguns dias para saber se a cirurgia foi bem-sucedida. “Você liga mesmo, vou esperar?”, duvida. Na saída, me ofereço para tele fonar para o centro de apoio com o meu celular. Ela consente. O filho tenta mostrar que já conhece tudo (já deve ser o homem da casa na prática), mas é humilde. Deixo-os com remorso e culpa novamente por não ter podido fazer um pouco mais. Os dois sozinhos lá na frente, esperando por uma kombi do SUS. “Fica com Deus”, digo apenas. “Obrigada, Maria”, penso comigo mesma. Maria é o nome dela, como não poderia deixar de ser: Maria Jeaneide Rodrigues.