quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Agradecimento a uma inimiga

Patrícia Diguê


Já se vão uns cinco anos de convivência. Vinha resistindo escrever sobre você. Puro medo. Preferia te ignorar na ilusão de que assim você desaparecesse da minha vida. No começo achava que me livraria rápido de você. Era apenas mais uma pedra fácil de chutar. Mas você foi ficando, me irritando, me desesperando, insistindo em me acompanhar por onde quer que eu fuja. Tentei te enganar, tentei fugir, tentei te cansar e entender o porquê de tanta perseguição. A convivência não tem sido fácil. Posso dizer que é a mais complicada que já tive. Eu te odeio com todas as minhas forças, mas você não me deixa em paz. Sempre acho que já fiz de tudo para que você me deixe, mas aí você insiste em aparecer e me obriga a encontrar uma nova alternativa para que possamos continuar convivendo com um mínimo de sanidade. Às vezes me conformo com sua presença, às vezes choro de raiva. Mas , fazendo um balanço desses anos todos, tenho que reconhecer que preciso te agradecer e talvez reconheça ainda mais seu valor daqui a um tempo. Com certeza tomarei consciência da sua importância quando você não estiver mais por perto. Não acho que sentirei saudades, já seria demais, mas te entenderei melhor quando nossa relação doentia acabar e eu puder olhar tudo com distanciamento. É verdade que talvez você nunca me deixe, eu sei, preciso considerar esta possibilidade. Mas ainda assim tenho que te agradecer por me ensinar tanta coisa sobre mim mesma.

Obrigada por me mostrar que não sou a senhora da minha vida; que não sou um robô com botões de controle; que igual a todo mundo sou fraca; que não posso querer ser tudo; que não posso ignorar meus sofrimentos, porque eles se manifestarão de formas muito mais destruidoras no futuro. Obrigada por me ensinar a compreender quem sofre; que algumas pessoas são mais frágeis que as outras e que às vezes só precisam ser ouvidas; por mostrar ainda que a maioria das pessoas quer se esconder em uma máscara de infinita felicidade, mas que no fundo enfrentam terríveis fantasmas também. Obrigada ainda por me mostrar que a vida não e uma ciência exata, que remédio não cura doença da alma e que buscar a paz leva tempo. Agradeço ainda a me obrigar a ter paciência; a ver que transformações levam o tempo que elas necessitam e não o que a nossa razão impõe; e também que cada um tem um tempo diferente. Enfim, a lista de contribuições seria infinita. Você me fez reavaliar tudo que sou desde que nasci, tudo que fiz de bom e mau, o que vinha fazendo comigo até aqui, me obrigando a repensar rotas, a jogar máscaras fora, a não ter vergonha de chorar e a buscar uma verdade. Estou longe de chegar nela, mas certamente seria um ser humano menos sensível e vazio se você não tivesse aparecido em meu caminho, derrubando todas as minhas certezas e minhas defesas, me obrigando a me render às forcas que regem o mundo em vez de tentar mudá-lo. Obrigada, insônia, por me mostrar que não sou nada, apenas mais um ser humano atrás de caminhos para aliviar a dor de existir.

Eu odeio a minha mãe

Patrícia Diguê


Fico olhando a foto dela, bem dentro dos olhos, tentando imaginar o que deve ter passado na sua cabeça naquela noite de 16 de outubro de 1992. No retrato, ela parece perfeitamente normal e até feliz. “Eu odeio a minha mãe”. A frase de seu filho martela na minha cabeça enquanto escrutino a foto. “O mistério da mãe desaparecida” foi como ficou conhecido o caso nos jornais da Inglaterra. M. Perez saiu de casa naquela sexta-feira para nunca mais voltar, nem viva nem morta. Tinha 48 anos, estava divorciada e tinha dois filhos, A., de 17, e R., de 12. Psiquiatra renomada, especializada em epilepsia, deixou apenas um bilhete aos filhos dizendo, em linhas gerais, que havia falhado como mãe e mulher e que não conseguia corresponder as expectativas da família. Seu carro foi encontrado dias depois a mais de 300 quilômetros. A polícia não entendia por que alguém com a intenção de se suicidar teria dirigido para tão longe e, além disso, como teria sido tão bem sucedida no ocultamento do próprio corpo. Por isso, acreditaram durante meses que ela estava viva. Mas, diante da falta de qualquer pista, M. foi considerada morta. Uma morta sem velório nem enterro, cujo fantasma atormenta a vida de A. e R. até hoje. Para todo mundo, eles dizem que os pais morreram quando eram pequenos. O pai, divorciado da mãe já havia 12 anos, morava no Chile, e morreu poucos anos depois. À época, ele estava doente e impossibilitado de viajar para a Inglaterra para ficar com os filhos. O avô é que veio. Durante muito tempo, os meninos ficaram assim, de mão em mão, de casa em casa. R. teve sérios problemas com drogas na adolescência e hoje sofre de esquizofrenia – carrega caixas de remédios por onde vai -, não consegue tocar projetos a longo prazo, nem assumir compromissos. É como se ele tivesse parado nos 12 anos, sem encarar responsabilidades, sempre dependendo dos cuidados do irmão mais velho, que sem querer acabou se tornando pai e mãe dele depois da tragédia. Não é preciso muito tempo de conversa para que logo revelem o que de verdade ocorreu com a mãe, mas não mantêm o assunto por muito tempo. A. é alcoólatra, sem falar na dependência do cigarro e uso de outras drogas. Tem emprego, amigos, a casa que a família deixou, mas é mentalmente fraco. “Bebo pra esquecer a realidade, aí eu durmo”, tenta explicar. Coleciona histórias tragicômicas sobre as incontáveis vezes que acordou em lugares sem saber onde estava. O discurso de que vai abandonar o álcool já não encontra qualquer credibilidade entre as pessoas que estão ao redor. Além da fuga na cerveja e na vodka, vive constantemente fazendo planos de mudar completamente de vida. Mas, na realidade, parece não ter forças para tomar qualquer iniciativa. Vive querendo fugir, dizem. “Vou comprar um terreno na Espanha e um pastor alemão”, conta. “Resolvi ir para o Japão, aprender a ser chef especializado em sushi”, sonha. Nas horas vagas, bebe. E, muitas vezes, tem crises de choro. E, sempre que bebe, diz que vai abandonar o emprego, o que já chegou a fazer, mas conseguiu reverter a situação após voltar à sobriedade. São pessoas doces, apesar disso, carentes e amorosas, sempre com um sorriso aberto e um bom humor contagiante. Mas quem os conhece sabe que a alegria esconde almas tristes e perdidas. A impressão é de que, inconscientemente, desejem morrer cedo. Na casa deles, algumas poucas fotografias em meio a latas vazias de cerveja mostram crianças felizes, inconscientes do que estava por vir.

Hoje encontrei A. Parecia feliz e saudável. Engordou. Voltava de um mercado com uma sacola cheia de comida. Um bom sinal, já que, quando embala nas noitadas, não se alimenta. Disse que não bebia havia sete dias e que, desta vez, estava decidido a abandonar o vício de verdade.

Sessão Privada

Patrícia Diguê


Sempre me gabei de ser daquelas mulheres que vão ao cinema sozinhas. Isso, pra falar a verdade, ocorreu só uma meia dúzia de vezes, normalmente quando quero muito assistir a um filme e, ao consultar a lista de possíveis companhias na agenda do celular, acabo preferindo abraçar a pipoca e a coca cola no escurinho. Ontem foi mais ou menos assim. Quero dizer, nem estava tão interessada assim no filme e nem tinha tanta opção assim no meu celular. Mas precisava mostrar pra mim mesma que ainda tenho forças para enfrentar o frio e a solidão. Logo ao sair de casa, deu vontade de voltar correndo. Além da temperatura não-convidativa pra largar as cobertas, ainda chovia e ventava. Já que havia tido tanto trabalho colocando uma coleção de blusas, segui firme e forte meu caminho. Após uma viagenzinha curta em um ônibus double deck lotado, lembrei que precisava providenci ar a minha companhia. Não apeteceu a pipoca, nem os sanduíches gelados do supermercado. Aí que para me manter fiel à minha dieta especial de muita gordura trans dos últimos meses, resolvi por um número quatro do Burger King, um cheese bacon com gosto de óleo saturado (mais batatas fritas e refrigerante, claro). Ansiosa pra mostrar como eu sou independente e bem resolvida, tratei de entrar logo na sala. Pensei: “Sem essa de esperar ficar escuro pra ninguém ver que estou sozinha, afinal, dificilmente eu encontraria alguém conhecido aqui mesmo e, se isso miraculosamente acontecesse, tenho a velha desculpa de que não sou daqui”. Respirei fundo e entrei na sala à meia-luz. Pra minha surpresa, não havia viv'alma no lugar. Olhei as horas e percebi que estava meia hora adiantada. Sentei confortavelmente na poltrona marcada (nos cinemas de Londres, você compra o ingresso com o número da poltrona) e até aproveitei pra botar os pés na cadeira da frente. Olhei para o s lados e saquei meu sandubão. Como tinha escondido ele na bolsa, com refrigerante e tudo, já era esperado que tudo tivesse se derramado lá dentro. A tarefa de tirar todas as tralhas, secar com os guardanapos do Burger King e me preparar para comer tinham pelo menos feito o tempo passar mais rápido. Mas ainda faltavam 15 minutos e continuava como a única expectadora. Entre uma música e outra da estação de rádio, podia ouvir o farfalhar do saco de batatas e até minha mastigação. De repente, a música cessou e os comerciais (uns 10 pelo menos) começaram. Foi então que percebi que, literal e tragicamente, assistiria ao filme completamente sozinha, nem daria pra disfarçar que estava com a turma do lado. Um certo pânico me bateu. Pensei em descer e dizer para os funcionários: “Olha, deixa pra lá, não foi uma boa ideia eu vir ao cinema às seis e quinze da tarde em uma terça-feira com previsão de nevasca”. Desisti. E comecei a sentir peso na consciência. Toda aquela parafernália gastando energia e gerando quilos de gás carbônico só para o meu bel prazer. Sem falar que ainda tinha pago meia-entrada. Enquanto esses pensamentos iam me constrangendo, o filme começa. E então entra uma moça. O que me aliviou, mas em seguida aparece sua amiga e fiquei imaginando elas me achando uma louca com a bolsa aberta cheia de guardanapos e um monte de batata frita na boca.

Comedinha romântica. Aquela atriz que fez “Diário de Bridget Jones” - que não estou com vontade de escrever o nome porque é impronunciável e insoletrável - é uma executiva de Miami atrás de subir na carreira que acaba indo parar em uma cidadezinha do interior, conhece um grande amor, se apaixona e se casa. Até agora não sei por que entrei para assistir a esse filme e, pior, ainda consegui chorar. Chorei especialmente na hora em que ela ganha de presente de Natal da secretária (snif) um caderno de anotações com algumas fotos dela mesma coladas. Aí a secretária aponta pra uma delas e diz: “Nesta você parece que está carregando todos os problemas do mundo nas suas costas”. Snif!

Na saída, um coroa puxa conversa enquanto eu esperava a chuva passar embaixo da marquise. “Acabou de ver um filme?”, perguntou obviamente. Achou que eu era da Bulgária. Contou que é sul-africano e que já tinha ido ao Brasil, passando por três estados. Brasília achou sem graça, São Paulo, muito grande, e Rio, “Yeah, Rio!”. A rápida conversa progrediu para a comparação entre as economias dos dois países (Brasil X África do Sul). E, comprovando que o marketing lulista de rei do petróleo está tendo resultado, ele, como muitas pessoas que tenho encontrado ultimamente, me diz: “Mas lá a economia está melhorando não é? Muito melhor que na África do Sul, está na hora de você voltar, não?”. Como demorei pra responder e fiquei olhando pra ele com cara de interrogação, ele ri, me deseja boa noite e entra no pub. Eu fico ali alguns segundos, prostrada, olhando para o nada. E de novo na companhia do frio, do vento, da chuva e da solidão, volto para casa, pelo menos agora sonhando com um lindo príncipe encantado que com certeza me espera calmamente em alguma cidadezinha do interior de algum lugar do mundo.

Mas eu te amava

Patrícia Diguê



Quando te conheci, seus cabelos cheiravam a escapamento e seu perfume era o do desodorante mais barato da farmácia da esquina.

Mas eu te amava.

Quando te conheci, nosso ninho de amor era um colchão já ondulado pela idade avançada e nossa trilha sonora vinha de fitas cassete gravadas de discos de vinil.

Mas eu te amava.

Caetano, Cult, U2 estavam todos na mesma seleção após longas horas em frente ao aparelho de som.

Suas camisetas muitas vezes cheiravam a gaveta e você fazia a barba com espuma feita de sabonete Lux.

Mas eu te amava.

Lembro que te amava mesmo quando usava uma zorba sem elástico, uma camiseta com furo ou uma meia trocada.

Quando te conheci, as flores que ganhava vinham do fundo do quintal e comer pizza fora era em ocasiões especiais.

Mas eu te amava.

Quando te conheci, você usava tênis, não sabia dar nó em gravata nem limpar direito a unha do pé.

Mas eu te amava.

Naquela época, seus cabelos batiam no ombro, seu peito cheirava a parafina e eu tinha que passar horas te esperando na praia.

Ainda assim, te amava

Te amava até com touca de banho cor-de-rosa, blusa do avesso ou calça um número maior.

Até quando esquecia as datas especiais, pechinchava cinquenta centavos ou alugava um filme repetido.

Naquela época, eu acabei concordando que não ter carro era descolado, que ir à praia com chuva podia ser interessante e que acampar era super confortável

Mas porque eu te amava.

Quando você contava a mesma história milhares de vezes, não ria da minha piada ou não levava a sério minha TPM, ainda assim eu te amava.

Quando te conheci, só te chamavam pelo primeiro nome, seus amigos chegavam sem avisar e no fim do ano você foi papai Noel.

Hoje, não te conheço mais. Mas, por favor, nunca se esqueça:

Eu te amava.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Quem dera te ver ao acordar

Patrícia Diguê


Hoje, ao abrir os olhos, desejei te encontrar depois da porta, com seu pratinho de comida assistindo a desenho animado. Por um instante, fechei os olhos e tinha certeza que ao sair do quarto toparia com seu sorriso aberto e olhos brilhantes de sinceridade infantil. Daria-te um beijo estalado na bochecha, te chamaria de “gostosa linda”, e, antes que pudesse escovar os dentes, você já começaria a despejar o relatório de tudo o que tinha acontecido naquela manhã.

Outra vez fechei os olhos e desejei que, talvez, a porta estivesse aberta. E você, sem entender porque alguém dorme quando já está claro, viria pulando na minha cama dizendo que já era dia. Aí eu pediria cinco minutinhos. E você contaria até cinco dizendo “Pronto, acorda”.

Abri os olhos e finalmente me convenci da impossibilidade de isso tudo acontecer. Puxei a cortina e vi árvores secas, janelas fechadas, pessoas encolhidas. Desejei cair em um sono profundo e só acordar quando pudesse sentir seu cheiro e beijar sua bochecha rosa. Aí me arrependi (pausa pras lágrimas)...

Aí me arrependi de ter ficado só 10 minutos com você na piscininha em vez de 20, de preferir assistir à TV ao brincar de cabana, de te deixar à noite, em vez de deitar do seu lado. Arrependi-me de toda a minha impaciência de adulto e senti raiva de não saber mais brincar.

Depois do arrependimento veio o medo. Medo de perder momentos tão importantes para sua vida. Medo de não estar quando você aprender a escrever uma frase inteira, de não estar do seu lado quando ganhar ovos de Páscoa, presente de aniversário ou descobrir que o papai Noel não existe.

Só espero ser perdoada, porque tudo que fazemos na vida, seja certo ou errado, no fundo é para um dia poder recompensar as pessoas que nos amam de verdade, aquelas que nunca esperam nada em troca, exceto um sorriso pela manhã.

A medida do logo

Patrícia Diguê


Uma telegráfica mensagem um ano e meio depois emergiu os sentimentos há muito enterrados. Saudade, paixão, raiva e tristeza subiram como lava de vulcão. Andou como zumbi naquele dia tentando reconstruir todos aqueles intensos momentos que tanto havia se esforçado para dissipar. Lembrou que aquela tinha sido a última vez em que havia dado uma verdadeira chance para um novo amor. Lembrou que a história teve até trilha sonora e telefonemas na madrugada. Lembrou também que inconsequente e cegamente dirigiu quilômetros em troca de apenas dois dias e duas noites. E ainda que, como nos contos de fadas, não se sentiu cansada nem arrependida. Conseguiu com dificuldade colar os pedacinhos daquele fim de semana em que se sentiu verdadeiramente viva. Também se lembrou da despedida. Nenhuma lágrima ou tristeza. Apenas singelo tchau entre pessoas que logo se verão novamente. Esquecendo que “logo” está entre as mais subjetivas das palavras.

Quando a paixão tem data de validade

Patrícia Diguê


O cenário era uma praia paradisíaca no nordeste do Brasil. Enquanto a maioria dos seis ou oito passageiros da van se olhavam com timidez, ele desembestou a perguntar de tudo pra todo mundo e em instantes já davam risada como velhos amigos. Graças a isso, o percurso de mais de uma hora entre o aeroporto e o hotel ficou curto, passou despercebido. Na chegada, recepcionistas com coco gelado, sorrisos de boas-vindas e aquele sol brilhando... só faltaram dançarinas fazendo o ula-ula. Dava para esquecer fácil que se tratava de um congresso profissional e se imaginar em um daqueles filmes que o magnata americano decide passar um fim de semana logo ali, em uma praia exótica da América do Sul.

Nesse clima de ilha da fantasia, percebeu que aquele moço brilhava mais que as jacuzzis que pareciam sair da areia ou o mar que se juntava em um tom só com o céu. O sorriso aberto se abria para todos, mas o olhar de tom verde já havia escolhido uma direção. Trocaram algumas palavras, riram e se viraram as costas, em direção aos quartos de lados opostos. Na primeira tarde de palestras, resolveu nem aparecer. Foi esfriar a cabeça no mar. A aliança na mão direita lhe lembrando toda hora do que era certo. As fantasias lhe atormentando a cabeça naquele cenário perfeito, queimando os miolos mais que o sol de 40 graus.

À noite, jantaram juntos, falaram sobre sites de relacionamento, eleições, desemprego, e tentaram ainda descobrir o que faziam ali naquele resort de bacanas, sendo patrocinados por uma indústria situada a horas de voo de onde trabalhavam. Acabaram decidindo que tudo se tratava de uma conspiração patrocinada por uma grande corporação internacional. Saíram sem rumo pela pequena vila, beberam e riram mais. Mas ao terminar da noite, viraram as costas, em direções opostas. Ambos deitados em suas camas kingsize, de lençóis brancos e macios, tentaram se convencer do que era moral e certo. E assim adormeceram, fortes em suas convicções.

Ao fim do dia seguinte, trocas de telefones e emails de praxe e se disseram adeus. Nunca mais ouviram um do outro.

Agora o cenário era um jantar importante no interior de São Paulo. Sabiam já que se encontrariam. Um ano havia se passado. Mas o que para ela parecia uma segunda chance do destino, se transformou em água gelada goela abaixo. Desta vez, a aliança havia pulado para o outra mão. Engoliu, olhou discretamente para suas mãos e lhe cumprimentou polidamente. Mas a sensação semeada naquele congresso chato de industriais entediantes aflorou com efeito reboque e naquela noite não enxergavam muita coisa além de um ao outro. Para piorar, ainda naquela noite saberiam que viajariam juntos para o outro lado do mundo em breve.

Nos primeiros dias, longe de qualquer olhar de reprovação, deram vazão a todo ímpeto controlado. Confessaram sentimentos naquele ano que passou. Ela, um arrependimento por ter deixado uma possível grande paixão passar. Ele, a angústia por ter vestido a fantasia do personagem de um roteiro pré-programado.

Mas o conto tinha data de validade. Duas semanas. Já nas últimas noites, ela foi direto para o seu próprio quarto. No mundo real, não cabia aquele amor. E, na volta, no aeroporto, mais uma vez se deram as costas, e foram para suas cidades em direções opostas. Ele vive o sonho de um dia poder deixar o palco e aposentar sua máscara. Ela segue incessante pelo mundo na busca de uma nova grande historia de amor.

A caminho do transplante

Patrícia Diguê


Ela cruzou a minha vida a muitos pés de altura, em algum ponto do céu entre Brasília e São Paulo. Havia saído às 4 da madrugada de casa naquela terça-feira. Lá de um lugar chamado Picos, a cinco horas de Terezina, o aeroporto mais próximo. Era um dia importante. Após a conexão em Brasília, onde eu embarquei, o destino era um hospital de São Paulo. Lá, o filho de 11 anos, portador de Hepatite C, se submeteria a uma cirurgia de transplante de fígado, após longos cinco anos de espera. A doadora era ela mesma, a mãe. Em um voo de gente importante, bem vestida e perfumada, ela se destacava: de brincos prateados um pouco descascados, cabelos presos no alto com um presilha de plástico, sandálias baixas também de plástico, calça legging branca, bolsa também branca e uma espécie de blazer azul. “Faz frio lá?”, perguntou-me. “Em Picos, é calor, sem ventilador não dá pra dormir”.

Apesar da figura destoante dentro do avião, foi tratada com uma naturalidade politicamente correta que beirava à indiferença e quase desdém. Sua poltrona era a do meu lado. Concentrada em minha revista sobre boa forma, preferi ignorar, no começo, aquela senhora – mais tarde descobriria que ela tem 33 anos, só dois a mais que eu – que falava um português embaralhado e errado. Mas percebi que estava aflita, pois suspirava profundamente de quando em quando. O motivo era que o filho havia ficado na outra fileira, ao lado. Pensei em trocar de lugar com ele, mas não queria me sentar na poltrona do meio, preferia o corredor. O egoísmo predominou. Que bom que não mudei, no final das contas.

Na hora do serviço de bordo – uma massa em quantidade ínfima e um copo de bebida – fechei minha revista e resolvi saber mais sobre ela. O que uma mulher com aparência de retirante faz aqui? Ela mesma teria pago a passagem? “Meu filho tem uma doença, tem que fazer transplante”. Gelei. Mas mantive a prosa. Ela respondia tudo com naturalidade e inocência, às vezes até rindo, um riso baixo e envergonhado. A comida chegou e percebi que ela copiava cada movimento meu: abre a tampa do prato pronto, pega os talheres de plástico, abre o saquinho de queijo ralado... ops... ela não consegue abrir o sachê e me pede ajuda. A partir daí, viramos velhas amigas que não se viam há muito e precisavam colocar as fofocas em dia. Ela continuava respondendo tudo animada e tímida ao mesmo tempo, sem me encarar muito. Mas eu buscava seus olhos como numa tentativa inconsciente de absorver um pouco do que eles já haviam presenciado. Passei a imaginar Picos, que não tem nada, segundo ela, só uns morros. Tem praça, tem prefeitura e tem escola. O prefeito é o Chico Paraíba, que, como o nome já diz, não é do Piauí. Mas é um homem bom. “Ele fala com todo mundo, pobre ou rico. Eu fui falar com ele pra ajudar meu filho”.

José Alonso faz hemodiálise, toma diferentes remédios e às vezes vomita sangue. Foi outras vezes a São Paulo para fazer exames. Mas sempre com o pai, que é alcoólatra. Saiu dos Alcoólicos Anônimos, que frequentou por cinco anos, e agora voltou a tomar cachaça. “É muito problema”, justifica a mãe. “Homem é mais fraco, mulher enfrenta, eu vim no lugar dele”. Foi sua primeira viagem de avião. “Não deu medo, é até melhor que ônibus, porque não faz assim”, se balança (mas bem que, na hora da aterrissagem, pôs a mão no coração, não sei se por temer o pouso ou por ver o mar de concreto pela janelinha). Desembestou a falar. “Tenho uma sobrinha que foi para a Aparecida pagar promessa”. Contou que conheceu Natal, onde até andou de camelo. Casou-se aos 17 anos. “Com minha mãe era assim, namorou tem que casar”. A família de nove irmãos mora toda no mesmo lug ar. A mãe morreu (de enfarto). O pai é músico na banda da prefeitura. Além de José Alonso, um menino franzino de pele manchada e cara amarrada, tem uma filha de quatro anos. “Não quero ter mais filhos, sou ligada (as trompas)”. O marido se transformou em um problema tão grande quanto o filho doente e só trabalha de vez em quando. “Casamento é difícil”, lamenta.

Renda fixa, só a bolsa-família, de R$ 90,00 para cada filho. “Votei ni Lula, sempre voto nele, ele falou que vai aumentar o bolsa-família”, diz com brilho nos olhos. “Não votei no Alckmin porque, você sabe (me olha constrangida como se me ofendesse), ele nasceu em berço de ouro. O Lula não, ele sabe, já passou pelas coisas”. O problema no bolsa-família é a gambiarra. “Tem criança que não precisa e ganha”, afirma com revolta.

Passa o carrinho da bebida. Na dúvida entre coca-cola light, suco artificial e cerveja Xingu, pede água. O passageiro da janela olha de soslaio. Imaginei-o incomodado com o conversê. Acho que queria dormir, em vez de ficar ouvindo aquele sotaque forte, ininteligível às vezes. Esqueci da revista. A mãe a caminho do transplante me mostra a bíblia, mais surrada do que o livro mais velho que já vi na vida. Mostra ainda o nome e número do telefone do centro de apoio que a receberá na cidade mais rica do País. O papel é sujo e esgarçado. “Não posso perder este número”. A bíblia é leitura diária, mas ela não costuma ir à igreja. “Se Deus quiser, vai dar tudo certo’.

Por instinto, faço algumas anotações sobre tudo aquilo em um bloquinho de papel que me acompanha. Também por instinto, busco algo para presentear-lhe em minha bolsa. Mas não encontro nada útil, além de chaves, documentos e maquiagem usada. Nada à altura dela. Pensei em dinheiro. Mas desisti. Não queria correr o risco de envergonhá-la. Conclui que minha principal função naquele voo atrasado e lotado era lhe dar ouvidos e mostrar que não era melhor por estar com roupas mais caras e ter o cabelo tingido e escovado. Sentia uma mistura de pena, raiva e também culpa. Fiquei com vergonha de falar de mim, nem a idade contei. Se ela perguntasse, mentiria. Só dei nome e a cidade que morava. “Conheci uma menina em Natal parecida com você que também chamava Patrícia”, se surpreendeu, me olhando um pouco mais agora. A vida dura lhe deu mãos com calos, rugas precoces, pouco peso e baix a estatura (menos de um metro e meio, tenho certeza).

Preparando para aterrissar. Ainda sobre as nuvens, um raio de sol bate em seu colo e ela se alegra. “Tá vendo, vai estar calor”, tento tranquilizá-la.

Chegamos. São Paulo está cinzenta. Prometi ajudá-la a pegar a mala na esteira. Os dois me seguem pelo aeroporto imenso, cheio de gente apressada. Antes, uma parada no banheiro. Quando se depara com a torneira automática, se atrapalha e me pede ajuda novamente. Ao ouvi-la me chamando pelo nome, me comovo, mas ajo com naturalidade. “Deixa, ela fecha sozinha”. Ainda a auxilio a tirar o papel toalha para secar as mãos (por que diabos existem tantos equipamentos diferentes para uma tarefa tão simples como esta, reflito naquele momento). Ela parece contente. Eu mais ainda. Sinto-me premiada por tê-la tido como companheira de assento. Queria conversar mais. Pego o número do celular de José Alonso. “Ele ganhou do avô”, conta orgulhosa. Pretendo ligar em alguns dias para saber se a cirurgia foi bem-sucedida. “Você liga mesmo, vou esperar?”, duvida. Na saída, me ofereço para tele fonar para o centro de apoio com o meu celular. Ela consente. O filho tenta mostrar que já conhece tudo (já deve ser o homem da casa na prática), mas é humilde. Deixo-os com remorso e culpa novamente por não ter podido fazer um pouco mais. Os dois sozinhos lá na frente, esperando por uma kombi do SUS. “Fica com Deus”, digo apenas. “Obrigada, Maria”, penso comigo mesma. Maria é o nome dela, como não poderia deixar de ser: Maria Jeaneide Rodrigues.