quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A folhinha

Celso Pinheiro de Oliveira

-O Vanderley!...Vanderley! o grito na oficina demonstrava a urgência do chamado.
Um par de pés, embaixo de um dos carros, agita-se em resposta. Firmam-se no chão e arrastam o corpo que, apoiado sobre um carrinho de rolemã, desliza com facilidade para fora.
-Tô aqui, chefe..
Vanderley era todo graxa. O macacão, a pele morena curtida do sol nordestino, os cabelos e a barba rala, composição perfeita de alguém que passava o dia envolvido com motores, engrenagens e rolamentos.
Pega um pedaço de pano que estava pendurado no bolso traseiro do macacão, tentando em vão retirar as camadas de graxa das mãos.
Oscar, o dono da oficina mecânica, apressa o seu mecânico.
-Vanderley, vai dar uma olhada no carro do Dr.Antonio, vai logo que ele está com pressa!
Pressa, parece que essa é a palavra da moda-pensa Vanderley. Tudo no mundo de hoje é isso, pressa!
Antonio e o seu Vectra aguardavam a chegada de Vanderley.
-Oi, dotô Antonio. O que tá acontecendo com a máquina? - pergunta Vanderley demonstrando a sua simpatia habitual.
-Vanderley, dá uma olhada nisso. Não sei o que está acontecendo.Ele está toda hora rateando e morrendo.
-Não se preocupe, dotô.Já vamos ver isso - falou Vanderley abrindo o capô do carro.
Enquanto olhava em busca do possível diagnóstico, grita por Gasolina.
Neguinho esperto, quinze anos de idade, Gasolina era o chamado "auxiliar quebra galho geral" da oficina.
Tinha aparecido na oficina há uns seis meses , buscando um trabalho com "seu" Oscar.
Era caso de precisão, dizia. Seu pai havia caído de uma laje, na obra que estava trabalhando.Agora, todo quebrado, "tava na caixa". Com dinheiro minguando e a mãe que se matava o dia inteiro lavando roupa pras madames, ele sabia que precisava ajudar no orçamento da casa.
- E o que você sabe fazer, neguinho? - perguntou seu Oscar
O menino, olhos brilhando e sorriso maroto, responde:
-Não sei fazer nada, mas posso aprender tudo.
Seu Oscar não consegue conter uma risada, que despedaça por completo a sua expressão, até então amarrada.
- Mas você é muito abusado mesmo hein neguinho! Tá bom garoto, entra lá no fundo da oficina e procura o Vanderley.Vê se ele tem alguma coisa pra você fazer.
Assim era o seu Oscar.Cara de bravo, reclamão e sempre gritando com todo mundo, mas, no fundo, um coração maior que o mundo.
A primeira tarefa que Vanderley arrumou para o menino foi suficiente para fazê-lo ganhar o seu apelido. Lavar as peças desmontadas dos carros em uma tina de gasolina, para que, depois de devidamente limpas, pudessem ser montadas. Com isso, o menino conseguira o seu emprego e o novo nome na oficina: Gasolina.
Vanderley mal acabara de levantar o capô do carro e lá estava o Gasolina pronto pra ajudar.
-Gasolina, pega a capa e cobre o banco do carro do dotô Antonio. Não vai deixar o banco sujo, certo?-Enquanto passava a instrução, Vanderley já examinava a bateria e o nível de carga, que não apresentaram nenhum problema. A verificação dos cabos e velas também não demonstraram nenhuma anormalidade.
-Deve ser o filtro ou a bomba de combustível - vaticina Vanderley, já desconectando do filtro o cano que vinha do tanque de gasolina.
- Gasolina, vai lá é dá a partida no carro!
Não precisou pedir uma segunda vez. Mais rápido que um raio, Gasolina sentou no banco do motorista, girou a chave de ignição e deu a partida no motor. Aquele sim, era um instante mágico para o garoto. Sentia o motor vibrando com a sua aceleração.
-Pode desligá garoto, já sei o que é - Vanderley gritou para o Gasolina e dirige-se para o dono do carro para dar o seu veredito.
- É a bomba de gasolina, dotô Antonio. Não tá passando nadinha de gasolina pelo cano.
-E demora muito para arrumar, Vanderley?
- Vou pedir pro seu Oscar ligar pra loja de peças, que sai muito mais barato que na concessionária. Se eles tiverem a bomba pra pronta entrega, em duas horas o carro tá pronto.
-Ok, Vanderley. Vou falar com o Oscar para acertar o preço. Capricha aí, Vanderley, que eu garanto depois a cerveja.
Vanderley respondeu com um sinal de positivo e um sorriso meio constrangido. Pensou que se bebesse cada cerveja prometida e não recebida já teria se tornado um alcóolatra.
- Ei Gasolina, vê se se mexe, garoto. Sai aí desse carro e vai lavar as peças que faltam. Tem muito serviço ainda pra fazer...
Gasolina abandonou seus sonhos de futuro piloto da Formula 1 e voltou ao batente - as suas peças e a tina de gasolina.
Fim de dia. Vanderley tenta, esfregando vigorosamente os braços com um saponáceo, remover toda a graxa e sujeira do trabalho. Mergulha braços e mãos na banheira de consertar pneus, enxagua com água limpa da torneira e, mais do que depressa, ganha a rua em direção a sua casa.
Na verdade, o que ele chamava de casa, era um quartinho minúsculo na pensão da Dona Eulália, um senhora que, ao ficar viúva, havia transformado o seu casarão decadente em uma pensão com comodos para alugar.Paredes com tantas infiltrações que pareciam um mapa mundi, uma cama com um colchão tão ralo que dava para sentir o estrado, um criado mudo e um pequeno armário com uma porta que teimava em não ficar no lugar, esse era o seu mundo. Pelo menos o aluguel era pequeno e, como a pensão era perto da oficina, Vanderley podia ir trabalhar a pé, economizando o dinheiro da condução.
Ao passar pelo posto de gasolina que ficava na esquina, Vanderley escuta o Jair, frentista do posto, chamando por ele e acenando com um canudo na mão.
- O Vanderley, separei a folhinha que você me pediu, vem pegar.
Vanderley segura aquele rolo de papel como se fosse um tesouro de valor inestimável.
- Obrigado, Jair, você é mesmo um amigão!- agradece, mal conseguindo disfarçar a emoção.
Vanderley continuou seu caminho, não sem antes escutar o amigo a zombá-lo.
- O Vanderley,não vai "estragar" a moça no banheiro, ok?
Era melhor fazer de conta que não tinha ouvido nada. Estava grato pelo presente e não queria entrar em discussão com o Jair.
Chegando ao seu quarto na pensão, passa a chave e tranca a porta, para que ninguém pudesse incomodá-lo.
Sentado na cama, começa a desenrolar a folhinha, com muito carinho e cuidado, para que nenhum movimento mais brusco pudesse danificá-la.
E, finalmente, lá estava ela, a sua Mariana. Para todos os outros era apenas uma moça de folhinha, anunciando uma marca de lubrificantes, segurando uma lata de óleo de carro, vestindo apenas a parte de baixo de um exíguo biquini, com enormes peitos à mostra.
Mas não para Vanderley- para ele era a sua Mariana. A primeira vez que a tinha visto, ela estava pregada na parede da borracharia do Olavo. Apesar de meio rasgada e ligeiramente encoberta pela sujeira do local,o encantamento de Vanderley foi imediato.Tinha que conseguir a sua.
E agora lá estava ela. Por inteiro, esticada bem no meio da sua cama.
Vanderley olha em volta, procurando o lugar ideal para colocá-la. Não poderia ser qualquer um, precisava ser especial.
Ao olhar o pequeno armário no canto do quarto, Vanderley descobre o que buscava.
Abrindo o armário, cola a folhinha do lado de dentro de uma das portas. Assim ela estaria protegida de todos os outros olhares. Guardada ali, apenas para ele e seus sonhos. Agora ele não estava mais só.
O calor que parecia aquecer a sua alma trouxe as lembranças de casa, da sua Juazeiro. Dona Cleontina, sua mãe, sentada nos degraus da escada que dava para o terreiro da casa,bacia no meio das pernas, descascando mandioca para o preparo da comida. As mãos rudes e cheias de calos, produzidos no cabo da enxada pela lida diária da roça. A pele vincada pelo sol inclemente. Lenço na cabeça, que teimosamente deixava escapar os primeiros fios de cabelos brancos.
Mas os olhos de sua mãe ...ah...os olhos de sua mãe. Nem a fruta mais doce do mundo poderia conter a doçura daqueles olhos. Olhos de quem, apesar de todos os sofrimentos , continua acreditando na vida, olhos que ainda conseguiam enxergar um futuro.
Olhos que te olhavam como se você fosse a pessoa mais especial do mundo.
E Vanderley sabia que ele era especial. Afinal, herdara o nome do maior ídolo da sua mãe,o cantor Wanderley Cardoso.Tá certo que o homem do cartório havia se enganado ao fazer o registro, colocando V no lugar do W.Conservou o "ipisilone", que, como a sua mãe dizia, era coisa de gente rica.
Lembrava nitidamente do dia que antecedeu a sua vinda para São Paulo. Dona Cleontina fizera questão de levá-lo para pedir a benção e proteção do Padre Cícero.
O braço servindo de apoio para a sua mãezinha subir a ladeira que levava à estátua do santo. Pelo caminho, inúmeras barraquinhas a vender toda a espécie de amuletos e lembranças milagrosas do padre.
Lá estava ele. Uma enorme figura de pedra branca, quase a tocar o céu.Mais um esforço para a mãe subir os degraus que levavam à base do monumento.
-Vanderley, meu filho.Precisamos subir e dar três voltas em baixo do cajado do santo, senão a graça não é alcançada.
E assim ele veio pra cidade grande. Dessessete anos mal completados, sonhando com uma vida melhor. Na esperança de conseguir dinheiro suficiente para poder voltar e dar um pouco de conforto para aquela mãezinha já tão sofrida.
Mas as coisas não sairam exatamente como planejado. O tio Clodoaldo, pedreiro de mão cheia, que o chamara para trabalharem juntos, depois de seis meses que Vanderley estava em São Paulo, teve que voltar às pressas para a Bahia para cuidar da mulher que havia ficado muito doente.
Como não queria acompanhar o tio e abandonar seus sonhos, decidiu ficar sozinho. Conseguiu um emprego com o seu Oscar na oficina.Tinha alguma experiência adquirida em motores de tratores e caminhões velhos, "remendados" em Juazeiro. Assim não saiu do zero e ainda podia dormir nos fundos da oficina. De lá, até aquele quartinho de pensão, já haviam passados quase dez anos.
Dez anos sem ver a sua Juazeiro, dez anos sem ver a "mainha". Só algumas cartas e, de quando em vez, quando sua mãe conseguia estar perto de um telefone, uma ligação para poder ouvir novamente sua voz. Varias vezes pensara em subir em um ônibus e ir ver "mainha". Mas não havia chegado a hora ainda. Não queria voltar de mãos abanando, sem cumprir o prometido. Sabia que tinha que economizar mais, talvez uns dois ou três anos mais.Então compraria uma casinha na cidade, tiraria "mainha" da roça e todo o sacrifício terá valido a pena. Mas, por enquanto, a saudade e a solidão continuariam a ser as suas companheiras.
Vanderley, dentro do ônibus, via a grande cidade desfilar seus personagens, sentado ao lado da janela lateral. Seu Oscar havia pedido que ele levasse uma documentação da oficina até o escritório de uns advogados no centro de São Paulo. Mais que uma gentileza prestada a quem sempre o havia ajudado, Vanderley fazia essas pequenas tarefas extras com um prazer enorme.Era sempre uma oportunidade de poder ver aquela cidade que lhe dava um certo medo, mas que, ao mesmo tempo, exercia um fascínio surpreendente.
A Avenida São João, o Viaduto do Chá, as escadarias do Teatro Municipal, o corre corre de milhares de pessoas que pareciam nunca poder parar. Tudo tão diferente do sertão nordestino, da sua Juazeiro. São Paulo era uma cidade onde as pessoas podiam caminhar juntas, todos os dias, sem nunca se conhecerem.
No elevador do edificio dos advogados, após haver entregue a documentação, Vanderley observa os outros "passageiros". Ao seu lado, vestindo uma saia e blusa muito discreta, estava uma moça de óculos, segurando contra o peito uma pasta cheia de papéis. A força com que ela segura a pasta, era desproporcional ao peso que ela poderia ter. Deveria estar muito nervosa, pensou Vanderley. Do lado oposto, um senhor de terno e gravata, muito alinhado. Cabeça empinada, era do tipo que olha as pessoas por cima, senhor do mundo. Ao fundo, de boné e moleton, um garoto tamborilava as paredes do elevador, provavelmente acompanhando a música que deveria estar ouvindo pelos auriculares conectados aos seus ouvidos.
- Dia quente, não dotô?- a pergunta endereçada ao senhor de terno ganha como resposta, um olhar entediado e de pouco caso.
-Dizem que hoje ainda chove - arrisca novamente, dirigindo-se agora para a moça da pasta. O esboço de um sorriso, a pasta apertada mais ainda contra o peito e o olhar voltado para o chão foi tudo que ele conseguiu.
Desapontado,vai para o fundo do elevador; juntando-se ao officeboy, começa ele também a batucar suavemente nas paredes do elevador.
-Sabe, Mariana,parece que as pessoas nessa cidade são muito sozinhas. Não se falam, não se cumprimentam. -porta do armário aberta, Mariana, da folhinha parecia escutar Vanderley com atenção absoluta.
- Como é possível estarem tão juntas dentro de um elevador e, ao mesmo tempo, tão distantes, como se vivessem em cidades diferentes?
Para Vanderley, o sorriso de Mariana lhe dava todas as respostas. Seus momentos de conversa com ela eram as melhores horas do dia. Para ele, Mariana estava bem alí, ao seu lado, viva e atenta. A sua única amiga nessa vida. Ele nunca quisera envolvimentos mais sérios com as mulheres.Elas só davam dor de cabeça e muito gasto - pensava Vanderley. Para ele, cada centavo economizado tinha que ser guardado na sua poupança. Era a sua promessa, era a volta para casa.
A agitação dentro da oficina naquela sexta feira era grande. Já havia virado uma regra da casa. Todo mundo sempre queria o seu carro pronto na sexta.Claro, fim de semana, folga, muitos passeios, sem carro não dava.
Vanderley arrumava o seu último carro. O dono reclamava de um barulho esquisito, parecia "ônibus velho".
Era engraçado as comparações que cada dono de carro fazia quando tentava explicar os defeitos. Coisa mais sem pé nem cabeça!
- Gasolina, o Gasolina, vem cá, neguinho, depressa!
Nem bem havia terminado o grito e o guri já estava do seu lado.
-O moleque, presta atenção.O dono desse carro se queixou que ele está fazendo barulho de ônibus velho nas rodas traseiras. Eu já te ensinei isso uma vez, o que você acha que é?
Gasolina fica em silêncio por uns momentos, como se estivesse passando em revista todas as lições aprendidas com Vanderley. A expressão de alegria sinalizou que ele havia encontrado a resposta.
-Já sei...já sei- as palavras eram atropeladas na pressa de mostrar seu conhecimento.
- Pode ser o pneu que está com problema ou é o rolamento da roda.
Vanderley deu um sorriso satisfeito. Aquele garoto era esperto e aprendia rápido tudo que lhe era ensinado.
Cheio de orgulho do aprendiz, mas sem querer demonstrar, para que o moleque não ficasse "todo abestado", Vanderley passa a instrução.
-Então deixa de moleza e pega logo o macaco prá gente levantar essa traseira e olhar os pneus e as rodas.
Carro levantado com as rodas traseiras no ar, Vanderley examina os pneus e não encontra nenhuma irregularidade. Gasolina observava tudo por cima dos ombros de Vanderley, atento a qualquer detalhe.
-Vamos ver as rodas - falou Vanderley começando a girá-las.
-Tá ouvindo o barulho, garoto?
-Tô sim, tá baixinho, mas tô ouvindo.
- Então, vamos lá com isso... qual é o problema?
- Com certeza é o rolamento da roda - responde Gasolina, comemorando como se tivesse marcado um gol em jogo de campeonato.
-Ei, seu moleque, tá abaitolando é? Tá pensando que já virou gente?- ralhou Vanderley.-Vai logo pedir pro seu Oscar encomendar a peça e deixa de frescura!
Enquanto Gasolina fazia poeira, correndo para cumprir a ordem recebida, o Jair do posto entra na oficina.
- E aí Vanderley, brigando com o Gasolina?
-Nada...é que a gente não pode amolece que o moleque folga! Mas eu vou te dizer uma coisa- esse moleque leva jeito.
- Que é isso, Vanderley? Tá ficando com o coração mole, ou tá "namorando" tanto com a folhinha que a cabeça já tá derretendo? - brincou Jair, fazendo movimentos com a mão como se estivesse se masturbando.
A reação de Vanderley é imediata.Se vira furioso,pronto para o enfrentamento.
- Tome "tenência", seu abestado, que eu não dei essas intimidades! Se veio procurando encrenca vai encontrá!
Jair, que nunca tinha visto Vanderley naquele estado, surpreende-se,mas logo cai na gargalhada.
-Epa, epa, meu amigo. Tenha calma, só estava brincando com você. Não vim aqui pra brigar não, vim pra te fazer um convite!
-Pois isso não é brincadeira que se faça! - respondeu Vanderley, enquanto parecia se acalmar.-Que convite?
-Acertei uma fézinha no jogo do bicho e ganhei um troco. Tô te convidando prá ir hoje á noite lá na casa de baile. Pegá umas meninas, levantá poeira do salão e depois tentá um amorzinho gostoso. A cerveja é por minha conta, mas só as cervejas, certo?
A casa de baile a que Jair se referia ficava em Pinheiros, perto da igreja. O Sandália de Prata era na verdade uma casa de forró. Muitos nordestinos faziam dela o seu ponto de encontro em São Paulo.Bebidas, mulheres e música boa até o raiar do dia. Havia também prostitutas que, pelo preço certo, arrastavam o "freguês" para um predinho ao lado do salão, que secretamente fornecia os quartinhos para a meia hora de falsos carinhos.
-Não tô podendo gastar, não, tenho muito compromisso prá pagar! - disse Vanderley querendo se livrar do convite.
- Não vou aceitar não como resposta.E que tanto compromisso é esse, se você não tem saido de casa nem pra beber com os amigos. De mais a mais, hoje a bebida sou eu que pago.Se você não quiser ficar com nenhuma menina, não precisa. Bebe e volta pra casa - insistiu Jair.
Dizendo que precisava terminar um serviço, Vanderley se despediu de Jair, prometendo que ia pensar.
- Certo, passo lá na pensão às oito horas pra te buscar, não vai esquecer, ok? insistiu Jair enquanto se afastava.
Vanderley sabia que ia ser muito difícil se livrar da intimação do amigo.
E como já era esperado, Jair venceu a parada e lá foram os dois para o Sandália de Prata.
Àquela altura da noite a casa já estava cheia. Um trio nordestino de sanfona, triângulo e zabumba, tocava enlouquecidamente em cima do palco, fazendo com que os casais, que lotavam a pista de dança, procurassem se esmerar no traçado dos passos,cada um querendo mostrar mais habilidade que o outro nos rodopios e agarramentos.
Conseguiram uma mesa que, para tristeza de Vanderley, ficava bem perto do palco. A altura da música e a vibração das caixas de som faziam de qualquer tentativa de conversa uma missão das mais difíceis.
Um garçom, depois de uma demonstração do mais apurado equilibrismo de bandejas, conseguiu atravessar aquele mar de pessoas trazendo as cervejas pedidas pelo Jair.
-É, a cerveja não tá tão gelada, mas até que refresca! - falou Jair, dando um gole que deixou seu copo pela metade. -Vanderley, fica aí bebendo a sua cervejinha que eu vou dar umas voltas pra ver se encontro uma meninas prá gente!
O arrependimento por ter aceito o convite de Jair já tomava conta de Vanderley. O calor insuportável e aquela música que parecia martelar dentro da sua cabeça faziam com que ele desejase sumir dalí.
Vanderley já começava imaginar um plano de fuga quando surge o Jair carregando duas meninas, uma em cada braço.
-Camarada essa é a nossa noite de sorte. Olhe as princesas que eu encontrei! - apontando a loira que estava a sua direita, Jair iniciou as apresentações.
-Essa é a Suelen, a nova dona do meu coração. E essa morena, que é o tipo da sua predileção, é a Micheli. Meninas, esse é o meu irmãozinho, o Vanderley.
Micheli usava um vestido estampado que dava um certo contraste com a sua pele morena. Cabelos escuros ondulados, do tipo que resiste às "chapinhas" e às toucas de meias.Não era exatamente bonita, mas seu rosto irradiava uma tal simpatia, que a fazia ser notada.
Enquanto Jair arrastava a sua loira para o meio da pista de dança, Vanderley tenta iniciar uma conversa com Micheli.
A moça dizia que tinha nascido no Espírito Santo, em Cariacica. Tinha chegado em São Paulo havia dois anos, para morar com uma tia e tentar estudo e trabalho.Para o estudo não tinha voltado, mas havia conseguido um emprego de promotora de vendas de produtos cosméticos.
Depois de uma meia hora, Micheli consegue convencer Vanderley a tirá-la para dançar. A proximidade e acotovelamento dos casais na pista torna inexistente a separação entre eles.Vanderley sente o corpo da moça grudando no seu como um adesivo.Os movimentos da dança, somados ao perfume que ela usava,começaram a fazer efeito.Por mais que tentasse controlar, a sua natureza de homem se fez presente. Micheli deu um sorriso maroto, como um sinal de aprovação.
A música parecia que não tinha fim. Vez por outra acabavam encontrando na pista com o Jair e a sua loira. O agarramento dos dois era tão grande, que Vanderley ficou preocupado que a segurança colocasse seu amigo e a parceira pra fora do salão. Só sossegou quando Jair se aproximou para dizer que estava indo embora com a moça.
- Vanderley, fica tranquilo que já paguei a conta. Tá tudo certo.Agora eu e a minha "lora" vamos achar um lugar mais no jeito pra gente namorar. Boa noite pra vocês também.E morena, cuida bem do meu irmãozinho,certo?- uma piscada de olhos e um sorriso malandro serviram de despedida para Jair.
- Se você quiser ir embora também, podemos ir - enquanto falava, Micheli grudou ainda mais seu corpo ao de Vanderley.
-Como?
-Vamos procurar um lugar mais fresquinho, onde a gente possa conversar melhor.
Micheli não esperou nem a resposta de Vanderley. Sendo puxado pela mão, ele foi conduzido como uma criança.
Já no quartinho do prédio ao lado do salão, Micheli pede para Vanderley ficar à vontade, enquanto ela ia tomar uma chuveirada, para tirar o suor - como ela fez questão de frisar.
Vanderley sentou-se na beirada da cama, tentando recuperar a calma e as idéias.
Enrolada em uma toalha que mal cobria os seus quadris, com a sua nudez praticamente à mostra, Micheli saiu do banheiro e se atira sobre Vanderley.
- Mas como, você ainda está assim? -disse Micheli já tentando desabotoar a camisa de Vanderley.
- Calma, não precisa ter pressa. Vamos conversar um pouco.
Micheli, com uma certa irritação, ajoelha-se na cama e com as mãos na cintura responde:
- O Vanderley, escuta uma coisa. O pessoal aqui do hotel só deixa ficar meia hora, depois cobra o dobro. Eu também tenho que voltar para o salão para tentar pelo menos mais um programa. Se você quiser que eu passe a noite, vai ter que pagar bem mais caro.
-Mas....mas então você é uma prostituta? - Vanderley faz a pergunta com cara de quem foi pego de surpresa absoluta.
- Não é bem assim, meu querido,é só de vez em quando.Tenho umas dívidas pra pagar. Depois disso paro. Você não precisa pagar, é só me dar dinheiro para ajudar com as minhas contas,um presentinho, certo? - Micheli era um dengo só.
Vanderley não podia acreditar. Claro que apesar de não ser um freguês frequente, ele já havia estado com outras tantas prostitutas. Mas, de repente, a Micheli lhe tinha passado uma imagem diferente. De alguém como ele, uma pessoa longe de casa, longe da família, solitária e sem amigos de verdade.
Sem voltar a olhar para Micheli, retira do bolso uma nota de cinquenta reais e sai do quarto. Ainda escuta a prostituta a reclamar com ele, mas nada disso tinha mais importância.
Ao chegar em seu quarto na pensão,antes de entrar, ele tira os sapatos.Entra pé ante pé, não acendendo a luz. No escuro se despe, cobrindo-se com os lençóis. Encolhido na cama e sem fazer o menor barulho. Não queria que a Mariana o visse chegar e nem que ela fosse testemunha da sua vergonha.

Já havia passado um mês da noite que Vanderley tanto queria apagar da memória. Fora uns cumprimentos e algumas palavras trocadas a distância, ele não havia mais conversado com o Jair. Os momentos e conversas com Mariana eram a sua alegria diária.
Mariana tornava a sua solidão suportável, lhe dava força e esperança.
O serviço na oficina não parava de aumentar. As dificuldades para comprar um carro novo faziam com que os donos de usados, passassem a cuidar com mais atenção dos seus carros.
Vanderley já estava há mais de uma hora tentando retirar a bandeja de suspensão de um carro. Ao cair em um buraco na rua,com a pancada, a bandeja havia entortado. O impacto havia entortado também os pivôs, o que tornava o trabalho de retirada uma missão de muita calma e força.
Um descuido e lá vai mais uma martelada na mão. Já era a terceira naquele dia. Algo ia mal, Vanderley pressentia. Uma angústia apertava seu peito como se fosse uma luva de ferro.
Por baixo do carro Vanderley vê uma pessoa chegando.Pelo pedaço das pernas que podia enxergar, alí de onde estava, era o seu Oscar.
Ficou esperando pelo chamado, que não aconteceu. Intrigado, empurra o corpo pra fora do carro e dá de cara com seu Oscar, em silêncio, parado ao lado do carro. A expressão de seu rosto não deixava dúvidas de que algo muito grave havia ocorrido.
Com a voz meio embargada, avisa:
- Vanderley, telefone no escritório para você. É o seu tio, lá de Juazeiro.
Vanderley corre para o escritório e atende o telefone.
-Tio, é você? Sou eu, Vanderley. O que aconteceu?
-Meu filho, você tem que ser forte. Aconteceu uma desgraça...é a sua mainha..
Vanderley sente imediatamente as suas pernas fraquejarem, como se o peso do seu corpo tivesse triplicado em uma fração de segundos.
-Como assim, meu tio, ela está doente?
-Ela morreu meu filho, ontem à noite; não deu nem tempo de te avisá...
-Não pode ser, meu tio. Mainha tava bem, tinha saúde de criança - a cabeça de Vanderley zunia.Ele se apoiou na parede para não cair.
-Ela foi atropelada quando vinha para a cidade. O motorista fugiu sem prestar socorro.Quando encontraram sua mãe,jogada na beira da estrada, ela já estava praticamente morta. Não deu para fazer mais nada. Enterramos a coitada hoje de manhã.
Vanderley já não escutava mais nada. O telefone escorrega das suas mãos e fica balançando na lateral da mesa, sustentado apenas pelo fio. Seu tio ainda o chamava do outro lado da linha, mas Vanderley se afasta do escritório, passando por todos que estavam na oficina como se ninguém existisse.
Gasolina ainda tentou correr em sua direção, mas foi contido por seu Oscar que, com um gesto, deu a entender a todos que naquele instante o melhor era deixá-lo um pouco em paz.
Vanderley não tinha noção de quanto tempo havia vagado pelas ruas do bairro.
A visão da sua mainha, abandonada à morte, na beira de uma estrada solitária no sertão de Juazeiro, era como um ferro em brasa cravado no seu peito.
Ele não pode nem ao menos se despedir de mainha.Nunca mais um abraço, nunca mais um beijo.
Já escurecia quando ele chegou na pensão da dona Eulália. Vai ao seu quarto, sabendo que naquele momento apenas uma pessoa o entenderia.
-Mariana...Mariana, mainha morreu, Mariana, ela morreu.
Os soluços entrecortavam cada palavra. Sentiu que as lágrimas voltaram a embaçar sua vista.
-Mainha morreu...E agora, o que eu vou fazer? De que me adiantou esses dez anos de sacrifício, Mariana? Mainha se foi e eu não cumpri a minha promessa.
- Tanta luta, tanta dureza,economizando centavo por centavo, pra comprar a casa pra mainha. Pra que Mariana,... ela também foi embora. Eu não tenho mais prá onde voltar!
_"Você tá me ouvindo, Mariana? Porque você não diz nada? Fala alguma coisa, Mariana"
- O que foi Mariana? Você também resolveu me abandonar? Fala Mariana, você também me deixou sozinho?
Em um gesto de raiva, Vanderley arranca a folhinha da porta do armário e, completamente fora de si, começa a rasga-lá em dezenas de pedaços.Suas pernas se dobram, levando seu corpo ao chão.
Junta alguns pedaços caídos da folhinha, como se quissesse montar um quebra cabeça que nunca mais se completaria.
-Porque, Mariana? Porque....?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A última edição

Celso Pinheiro de Oliveira

Jorge entrou em sua sala sem conseguir disfarçar a contrariedade.
Fechou as persianas das janelas de vidro que davam para a redação, na busca de uma privacidade que certamente não teria.
Sabia que a atenção de todos, naqueles instantes urgentes, estava voltada para aquele espaço de seis metros quadrados, uma ilha de vidro bem no meio do furacão.
Fez a volta na mesa, jogando-se na cadeira, como um saco de roupa suja atirado no tanque.
Com um gesto automático, buscou o maço de cigarros no bolso da camisa, esquecido do vício que havia abandonado três anos atrás.Olhou para o cinzeiro em um canto da mesa, agora um receptáculo de clips das mais variadas cores e tamanhos.
-Meu Deus,que falta me faz esse maldito!Uma tragadinha só...
Às vezes ainda sonhava que estava fumando. Longas baforadas acompanhadas da "loira gelada" e dos petiscos cheios de gordura do bar do Carlão, um boteco de quinta, mas com um público de primeira. Jornalistas, notívagos sem pressa, músicos e meretrizes. Atravessavam a madrugada em discussões de alto teor etílico, que certamente não deixariam a menor lembrança no dia seguinte.
O ramal interno toca.Era o Carlos, o editor de política do jornal.
-E aí, Jorge, alguma novidade? A negociação prossegue? - sua voz deixava claro a aflição que o dominava.
- Lá em cima está uma loucura. A Clarisse, secretária do homem, está toda descabelada, perdida na lista de ligações a fazer e a atenção às necessidades do povo na sala de reunião.
-Você acha que ainda podemos ter esperança? - insistiu Carlos.
Jorge respirou fundo.Os longos anos de amizade e trabalho com Carlos o tornavam transparente ao colega.Sabia que qualquer inflexão, qualquer mudança de tom na sua voz,demonstraria uma desesperança que não faria bem a ninguém naquele momento.
-Camarada, não sei o que te dizer.Do jeito que as coisas estão, qualquer resultado é possível.O Augusto está lá, com quinhentas negociações em andamento;não consegui extrair nenhuma informação nova.
- Sei, entendi....É que o povo aqui na redação está sem rumo.Parece que o desespero está tomando conta de todos.
_Eu imagino, Carlos. Só que não podemos fazer nada para alterar o quadro.Você precisa me ajudar aí com o povo.Tente acalmar os ânimos... na medida do possível .Vamos fechar a edição e enviá-la para a gráfica.Não acredito que tenhamos alguma solução hoje.
-Vou tentar... vou tentar,eu mesmo não estou me segurando.Mas vamos lá.Acho que mais uns cinquenta minutos e estará tudo pronto para enviar à gráfica.
Por um cantinho da persiana abaixada, Jorge pode ver Carlos desligando o telefone, cercado por seus colegas que estavam ouvindo a conversa.
A sensação de impotência era terrível. A situação toda havia chegado em um ponto sem volta.Sem a chegada de um novo investidor,o jornal fecharia as portas no dia seguinte. Augusto tinha que encontrar a solução.
Augusto Ferreira, o presidente do jornal, havia herdado a Folha Liberal de seu pai,Antonio Machado Ferreira, um senador da República, que passava a maior parte do seu tempo nos afazeres e negociações de Brasília, deixando para o filho o dia a dia do jornal
Augusto conseguiu transformar a Folha Liberal em um veículo de prestígio. Políticos e empresários disputavam a primazia de "aparecer" em suas páginas, sempre muito lidas. Os cadernos de Nacional, Cidade e Esportes eram referência para qualquer leitor que quisesse se manter atualizado com as notícias.
Mas todo o talento que Augusto tinha na condução do editorial e na conquista de seus seguidores sucumbiu diante da sua tremenda inabilidade no trato das coisas do financeiro e do negócio em si.
Anos seguidos de apostas erradas, investimentos mal sucedidos, concorrência predadora, aumento constantes dos custos,dívidas impagáveis com os bancos e o fisco, seguidos de uma baixa expressiva das verbas de propaganda, haviam colocado aquele jornal, de mais de cinquenta anos,em sua rota final.
Ou se achava um novo sócio investidor ou estaria sendo rodada a sua última edição.
Para Jorge, como para tantos outros companheiros, mais que a perda do emprego e da chance de reaverem alguma coisa do passivo trabalhista acumulado, o que estariam perdendo é uma parte significativa de suas vidas. O jornal havia se tornado a continuação da família de todos eles.
Quase trinta anos de dedicação e muita luta. Alegrias acumuladas intercaladas por tempos difíceis, para eles, para o jornal e também para o país.
Jorge percorre com os olhos cada canto da sua sala.A sua mesa era o retrato do caos organizacional que sempre o havia acompanhado. Pilhas de recortes de matérias,edições antigas do jornal, revistas para referências, livros, enfim, a anarquia total disputando, com o telefone e o monitor do computador,cada centímetro do espaço.Quantas vezes ele precisava ligar para o seu próprio celular, para poder encontrá-lo enterrado nessa babilônia de papéis.
Seus dois filhos lhe sorriam,emoldurados entre vidros e alumínio, em uma foto tirada no natal passado.A sensação da eternidade, de que tudo tem uma continuação.
E, bem ao lado do porta retrato, colocada dentro de uma carteira de plástico, do tipo usado para guardar carteira de motorista, estava ela - uma embalagem antiga do bombom Sonho de Valsa, com as cores já esmaecidas pelo tempo.
Imediatamente lhe vem a mente aquela sala úmida e sem janelas. No ar, o odor de urina e fezes misturando-se com o cheiro do pavor, do medo. A escuridão trazia consigo os sons de gritos lancinantes e choros desesperados. Era impossível distinguir se vinham do seu companheiro do lado ou de uma outra cela.
Naquele lugar a noção do tempo não existia. Segunda ou terça, de manhã ou de noite, tudo era uma imensa interrogação.O ser humano reduzido a sua mais primitiva forma. A vida ou a morte,faces da mesma moeda.
O barulho da tranca da porta sendo aberta, imediatamente coloca todos de sobreaviso. A angústia e a sensação de desespero silenciosamente toma conta de todos. Quem seria o próximo a ser levado?
Instintivamente cada um procurou se arrastar para um canto mais distante daquela porta, em uma tentativa inútil de buscar a fuga do inevitável.
A luz vinda do corredor, pela abertura da porta, cega momentâneamente os olhos, habituados apenas com a escuridão.
- Olha aí, pessoal, consegui arrumar dois bombons para vocês. Comam logo e sumam com o papel da embalagem. Se o sargento souber que eu trouxe isso pra vocês vou ficar mal arranjado...
Não era possível reconhecer aquela voz, mas havia algo de amável, de humano, nela, uma contradição a tudo por que estavam passando naquele pedaço de inferno.
Os bombons foram jogados no chão e a porta foi fechada rapidamente.
O silêncio era absoluto. Todos pareciam congelados, imobilizados pelo inusitado do ocorrido.
Lentamente alguns movimentos são percebidos. Mãos a tatear o chão da cela em busca dos bombons.
-Achei, estão comigo. O que vamos fazer, dividi-los?.
A pergunta de Gustavo, mais do que uma intenção, trazia a dúvida que estava presente na cabeça de todos.
Porque havíamos ganhado aqueles bombons? Estariam envenenados, ou com alguma droga experimental? Morreríamos ou sairíamos a "cantar" tudo o que os nossos algozes tentavam descobrir?
As emoções giravam como um caleidoscópio enfurecido. Que país era esse, onde os jovens eram atirados em porões fétidos para serem torturados e assassinados, sem nenhuma defesa possível, só por pensarem de uma maneira diferente dos que estavam no poder? Por ambicionarem um país com mais liberdade e democracia?
Uma tortura tamanha, que até um simples bombom poderia ser confundido com uma arma letal.
- Ok, vamos fazer o seguinte. Eu dou a primeira mordida. Esperamos um pouco, se nada acontecer continuamos a divisão.Cada um dá uma mordida pequena e passa para o companheiro que estiver à direita. Gustavo dá a primeira mordida e passa o bombom para o próximo.
Após algum tempo, como nada aconteceu, a divisão é retomada.
Jorge pensa que, ao chegar a sua vez, quase nada sobrará do bombom.Abriu bem o papel da embalagem procurando lamber cada grãozinho que havia restado.A intenção não era combater a fome. Era a ligação com o mundo lá fora. Cada pedacinho daquele doce o levava mais perto da vida, da fé e da vontade de sobreviver, de voltar.Uma ponte entre o desespero e a esperança.
Alisou o papel sobre a coxa. Esticou cada canto, para depois dobrá-lo milimétricamente, guardando-o em uma parte desfeita da barra da calça.
Jorge sabia que iria conseguir. O Sonho de Valsa seria a sua testemunha desse pesadelo interminável.
A entrada de Carlos na sala o trás de volta de suas lembranças.
-Chefe, missão cumprida!Já enviamos tudo para a gráfica.Notícias do pessoal lá de cima?.
-Não, nada.
- Eu, o Tonho, o Lucas e o Adalberto vamos fazer um "vigília cívica" lá no bar do Carlão. Você não quer ir com a gente?
- Não, camarada. Vou ficar mais um pouco para soltar uns emails e depois vou pra casa. Estou com uma tremenda dor de cabeça.
- Ok, mas qualquer novidade você avisa pra gente, certo?
- Fique tranquilo.Qualquer coisa aviso vocês.- falou Jorge - tentando passar uma certa confiança em sua frase.
Carlos balança a cabeça e se retira, com uma expressão de quem não acreditava muito no otimismo do amigo.
Novamente sozinho, Jorge dá uma lida rápida nos últimos emails que havia recebido e resolve ligar mais uma vez para a presidência do jornal.
Ninguém atende no telefone da Clarissa, nem nos ramais próximos. Jorge sabia que Clarissa jamais iria embora antes do Augusto, o que significava que a reunião já havia acabado e provavelmente todos haviam se retirado. Mais uma noite de espera e angústia.
Jorge abre a porta de sua sala e sai na redação, agora completamente vazia e quase na penumbra. As luzes das telas de proteção de alguns monitores davam um contorno azulado às mesas e cadeiras.
Nunca a sensação de solidão daquela redação foi tão aguda. Jorge sabia que agora só adiantava esperar. A solução seria encontrada.Hay que tener fe!
Já se encaminhava para o hall dos elevadores, quando lembra de ter esquecido algo. Volta para a sua sala e apanha em cima da mesa a embalagem preservada do Sonho de Valsa.
Colocando-a no bolso de seu paletó, dá um pequeno tapinha, como se estivesse cumprimentando um amigo.Sente a esperança voltar. Afinal,como dizem, é sempre mais escuro antes do amanhecer.Amanhã... bem, amanhã é um outro dia.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Natal de 2000

Obrigado pela gentileza. Não estava aqui, esqueci de colocar os sapatos na janela (ou, melhor, dependurados debaixo do aquecedor d'água...). E, além disso, soube que o Noel ia chegar mais tarde porque tinha de passar pelo RGS para trocar os veados do trenó...

Sabem vocês, muito mais do que eu, dos ensinamentos do Roland Spicky (1960 - 1985) sobre os cuidados com as mensagens da Internet. É nisso, por exemplo, que o nosso Bill Gates anda trabalhando quanto a aceitação dos livros eletrônicos que virão por aí. Ele (nosso Bill), acha que vai chegar numa plataforma semelhante ao papel, onde se possa virar as páginas como quem deixa escorrê-las entre o indicador e o polegar. Mas o que ele propôs, mesmo, aos seus parceiros de hardware, é chegar num material e numa arquitetura capazes de secar pétalas de rosa do antigo namorado, rapidamente.
Spicky resumiu suas observações no decálogo que todos nós, com certeza, devemos considerar exemplares do ponto de vista da comunicação.
1. Quando alguém bate à porta, a coisa toda é curta e grossa: abre-se e cumprimenta-se o amigo (o familiar, o visitante esperado....). Quanto mais trancas a gente tiver que abrir para ficar feliz ou desvendar a surpresa, mais a gente se irrita.
2. Quando o telefone tocar, diga o seu nome ou o número. Assim, do outro lado, o interlocutor não perde tempo e você também não.
3. Quando a gente abre a janela, pela manhã, também é curto e grosso... A gente quer ver o tempo que está fazendo: um belo Sol ou uma bela chuva.
4. Quando a gente abre a janela, à noite, é curto e grosso, também... A gente quer sentir o frescor da brisa e ver o céu estrelado.
5. Abanar a mão p'rá quem tá partindo, no trem, no ônibus (até no avião): é curto e grosso.
6. O cão abana o rabo p'ro dono, independente do rabo do cão ser curto ou do dono ser grosso.
7. Quer mais que um olhar...?
8. Lembra quando a gente fazia conta de somar e diminuir com palitinhos? Demorava muito mais, não?
9. Lembre-se: acender a luz foi uma grande invenção. Apagar também. Só precisa de um interruptor para fazer as duas coisas...
10. Sabe que tem gente que não sabe p'rá que lado aperta o parafuso? Melhor do que os que não sabem p'rá que lado fecha a torneira.
Bill Gates está tentando recuperar alguns algorítmos que Spicky deixou gravado em cartões. Há dificuldades evidentes, como os estragos promovidos pelas traças. Tem um banco lá em MG que também está tentando recuperar os estragos da enchente nos caixas eletrônicos de agência mais moderna da região. Nada que não se possa remediar. Ainda estamos vivos.
Feliz 2K.
AC.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Verdadeiros Encontros

Celso Pinheiro de Oliveira


Eram 21h30 e as ruas do Itaim já haviam trocado de público.
A agitação, o trânsito e o corre corre do dia, cederam lugar para a movimentação dos frequentadores da noite. Casais, grupos de amigos, solteiros e "ficantes", caça e caçadores em busca dos bares e casas noturnas da região.
Era como se a vida trocasse de cenário, para um novo elenco de atores que buscavam suas marcações.
Eu acabara de sair do escritório e, no caminho do estacionamento para pegar meu carro, decidi caminhar um pouco mais, na tentativa de baixar a tensão que me dominava.
O dia de trabalho havia sido bastante desgastante. A pressão por resultados, a luta por preservar as posições em nossos empregos, fazia de cada um de nós, combatentes de uma guerra não declarada, que encontra seu campo de batalha, muitas vezes, dentro das fileiras da nossa própria tropa.
No entanto, o que mais me incomodava naquele instante, era a discussão que havia tido pelo telefone com a minha mulher.
As ásperas palavras trocadas ainda ecoavam em minha cabeça. Como se fossem uma marreta, elas continuavam batendo em minha mente, afastando qualquer possibilidade de defesa ou esquecimento.
As reclamações eram recorrentes. Que eu não voltava mais cedo para casa, que o mundo agora estava reduzido somente ao trabalho, que para ela só restava a casa e os filhos. Onde eu havia escondido o homem por quem ela havia se apaixonado? E, por fim, a pergunta que sempre finalizava a discussão - o nosso amor havia acabado?
Como ela podia fazer uma pergunta dessa, se a pauta de toda a minha vida sempre foi a de buscar a proteção e a segurança de minha família?
Não seria por outro motivo que eu aguentava toda a pressão do meu trabalho, os "ataques" e conchavos em busca de um dinheiro cada vez mais difícil.
Não é fácil compatibilizar o idealismo e os sonhos da juventude com metas e resultados de vendas da companhia, somados a uma montanha - sempre crescente - de contas para pagar. Na verdade, nos últimos tempos, minha grande companheira era a insegurança, o medo de não conseguir atingir todos os objetivos traçados.
Os sons e risadas de um bar me acordaram dos pensamentos. A alegria que reinava na casa era contagiante. Quem sabe não encontraria ali um lenitivo para as minhas angústias?
Escolho uma mesa bem no canto - mesa de observador, de quem quer ver a agitação sem participar. Deposito na cadeira o meu cansaço e peço uma dose de whisky.
O rodar do gelo no copo provocava um ruído que funcionava como um mantra. Pouco a pouco, o alvoroço das conversas dos clientes do bar foram ficando mais distantes.
Não sei quanto tempo fiquei naquele estado letárgico. Alguma coisa começa a me incomodar. Uma sensação de ser observado, de algo ou alguém querendo chamar a minha atenção.
Do outro lado da fileira de mesas encontro a fonte do meu incômodo. Uma mulher me encarando, chamando a minha atenção.
Na verdade chamá-la de mulher, considerando a diferença de idade entre nós, era um exagero.
Deveria ter, no máximo, vinte e cinco anos que, comparados aos meus cinquenta e dois, faziam dela uma menina.
Não é comigo, pensei, desviando o olhar. Mas ela continuava me olhando fixamente, coisa para não deixar dúvidas.
Devo ter deixado escapar alguma expressão vaga, que ela tomou como incentivo e prontamente se encaminhou em minha direção. Sentou-se na cadeira vazia ao meu lado e começou a conversa, como se fossemos amigos de longa data.
Sua conversa, sua juventude e alegria, seu sorriso desinteressado, começou a me conduzir a um outro mundo, a uma nova realidade. Cada gesto, cada palavra, seu perfume. O meu corpo e alma estavam entregues em uma bandeja. Tudo foi esquecido, nada parecia ter mais importância.
Não sei quanto tempo me deixei levar por essa sensação de intensa alegria. Tudo havia perdido o sentido, Minutos e horas não contavam mais.
O sentimento de poder parecia ter voltado a frequentar as minhas emoções. Ela ouvia tudo o que eu falava como se eu estivesse explicando o significado da vida. Atenta, bebendo cada frase minha como se fosse um precioso licor.
O calor produzido pela proximidade de nossos corpos, a cumplicidade de seu braço apoiado sobre a minha perna, a magia daquele momento. Cada vez ficava mais clara a minha entrega.
Por um instante nossas bocas ensaiaram um encontro. Pude até sentir o aroma de hortelã misturado com a vodca que ela estava bebendo.
Quase perguntei onde ela tinha estado durante todos esses anos. A tempo evitei o vexame, percebendo que, provavelmente durante a metade da minha vida, ela nem nascida era.
Aquela menina me lembrava muito alguém e, por mais estranho que pudesse parecer, percebi que a semelhança era com a minha mulher.
Era o mesmo envolvimento, a mesma magia, um encantamento despertado há mais de vinte e cinco anos.
Repentinamente, em seus olhos vejo refletida a minha imagem. Não a de hoje, envelhecida e sem brilho, mas a de vinte, trinta anos atrás. De um jovem a desafiar o mundo, um Don Quixote contra os moinhos de vento.
Tudo ficou claro, como se uma imensa luz passasse a iluminar um quarto há muitos anos escuro em minha mente.
Chamo o garçom para acertar a conta. Deposito um beijo de agradecimento na testa daquela menina que, ainda atônita com a minha atitude, não consegue esboçar nenhuma reação.
Ganho a rua e sou recebido pela brisa da noite. Aquele aroma tantas vezes sentido em minha adolescência e juventude. Um aroma que sempre esteve lá, mas que eu tinha perdido a capacidade de sentir.
A consciência e a certeza do que deveria fazer fez brotar asas em meus pés. Meu corpo flutuava por sobre as calçadas.
Sabia que havia muitas coisas a resgatar. A mulher, os filhos, a casa e os amigos. Acima de tudo e de todos, uma era muito especial.
Era preciso resgatar aquele jovem refletido nos olhos da menina do bar. Um jovem que não dependia do corpo físico, mas sim das suas emoções.
Os sonhos e o coração nunca envelhecem.