quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Um lado da sombra


Ilda Simonetti

Eles namoraram quatro anos, entre namoro e noivado. Dois de namoro e dois de noivado, na verdade; era de se esperar que se conhecessem bem, e se conheciam.
Na primeira vez em que saíram, foram ao cinema, e depois jantaram num restaurante bonito e charmoso, coisa que ela não estava acostumada, afinal tinha apenas 22 anos, e até então só havia namorado estudantes de 24 ou 25 anos, que não podiam proporcionar a ela esse tipo de encontro. Além disso, ele tinha carro! Zero quilômetro, um DKV verde claro, com cheirinho de novo, e era gerente de vendas em uma multinacional famosa...
Durante o jantar, em meio a inebriante felicidade dela, ele lhe disse que não queria começar esse relacionamento com uma mentira, e lhe contou que era casado, estava se desquitando, na verdade naquele tempo não havia divórcio, estivera casado durante dois anos, não havia nenhum filho, a esposa o havia deixado por outra mulher, ele não fora o melhor dos maridos, confessou, mas aprendera com o erro, e pediu a ela que não contasse aos pais dela.
" Eu vou à sua casa, disse ele, eles ficam me conhecendo e, quando me conhecerem, se gostarem de mim, vai ser mais fácil me aceitarem como genro. Se contarmos agora, sem que me conheçam, já vão estar predispostos a proibir o namoro".
Ele estava certíssimo. Ela estava maravilhada! Na verdade, não chegara a sentir por ele nada ainda, apesar de achá-lo atraente, mas ele era um homem! Até então só conhecera meninos, ele era experiente, tinha quase seis anos a mais do que ela, e tinha um carro! Um carro novo e bonito, naquele tempo só pessoas mais velhas tinham carro, e nem eram tantas, e os carros eram de modelos mais convencionais l, ele estava realmente parecendo um Príncipe Encantado... Naquela noite, ela dormiu feliz.
Como combinado, na outra semana ele foi a casa dela conhecer os pais, e começaram a sair juntos, ainda sem nada formal, só estavam namorando, se conhecendo, e, como ele previra, os pais dela gostaram muito dele, ele era encantador, inteligente, parecia que tinha um futuro, e tudo corria às mil maravilhas, até que depois de três meses ele veio a casa dela para o encontro semanal e, parecendo bastante chateado, disse a ela que a ex o havia procurado, queria voltar, estava até ameaçando se matar, por isso ele ia dar mais uma chance a ela, puxa, que chato, mas o que ele poderia fazer?
Ela ficou arrasada, mas se fosse assim, se não tivessem futuro, era melhor partir pra outra, não é verdade? E assim foi feito. Mas quem disse que ela se contentaria agora com coisa menor do que o que ele oferecera? Para ela, o fato dele ter sido casado o tornava um marido perfeito, ele já havia experimentado, não dera certo, estava claro que ele só poderia ser agora, um excelente marido, com certeza havia aprendido a lição...
Era carnaval, ela viajou com a irmã mais nova para Santos, mas a irmã era sete anos mais nova, a turma só tinha gente adolescente, eram quase crianças, que saco!
Terminado o carnaval, uns dias depois, eis que ele telefona pra ela dizendo que não havia dado certo a volta com a ex esposa, e que, se ela quisesse, ele agora iria formalmente fazer aos pais dela o pedido oficial de um relacionamento sério, costume daqueles tempos...
Dito e feito, ela feliz, os pais felizes, só que a partir daquele momento, a partir daquele exato momento, quando o namoro ficou oficializado, tudo mudou, não só mudou como mudou muito, mudou da água para o vinho, o que antes era um relacionamento prazeroso, cheio de brincadeiras, se tornou um relacionamento sério, ele não brincava mais, se ela brincava, ele não reagia mais como antes, de relacionamento só tinha o nome, porque ele e ela realmente não se relacionavam, saiam juntos, quase não havia conversa, ele não falava, se ela falava, ele mal respondia. Havia  se transformado quase num sacrifício saírem juntos, mas ... ela havia se condicionado a achar que tinha que ser ele, já estava apaixonada, e apesar de achar que não era correspondida não estava disposta a abrir mão daquilo, ah, não, seria muito difícil encontrar alguém igual... puxa, ela nem sabia o quanto estava certa, outro igual com certeza ela não acharia, puxa se ela ao menos tivesse quem a aconselhasse, mas escutaria ela alguém que fosse contrário ao que ela queria? Quanta imaturidade... será que era o destino forçando aquela relação, ou ela teria tido a chance de ser feliz com outro alguém se ela tentasse? Isso ela não sabe, e nunca saberá.
Eles arrastaram esse namoro por dois anos, e quando ele propôs ficarem noivos ela aceitou! Sabem o que ela pensou? Agora ele não conversa comigo, mal me olha, mas no dia a dia, quando morarmos juntos, ele vai ser obrigado a conversar comigo, afinal moraremos juntos só nós dois, é claro que teremos que conversar, aí tudo se resolverá! Até que havia chance disso acontecer, mas um observador mais atento teria percebido os sinais... aquilo não daria certo nunca... ele não perdia ocasião de brigar com ela pelo mais bobo dos motivos, o que a deixava completamente confusa... ele encontrava motivos para brigar por coisas tão insignificantes para ela que a deixavam desarmada, nem argumentos ela encontrava para se defender, era tudo tão absurdo... por que ele estaria com ela, ela se perguntava constantemente? Porque era uma moça de boa família, e iria dar uma boa esposa? A família dele a adorava devia ser por aí, ela já havia até tentado, no desespero, dizer a ele que achava que ele não a amava- e ele dissera a ela, curto e grosso; “então se faça ser amada”! Deus, nem isso fez com que ela tomasse qualquer iniciativa, ela estava se tornando um capacho dele, estava nessa prévia do casamento lançando a base para o futuro que a esperava, onde ela seria humilhada, e nunca, jamais, respeitada, mas que graça ele acharia em uma esposa assim? Como ele poderia respeitar uma esposa assim?
Perguntas nunca respondidas... só o que ela soube, muitos anos depois, quando já casados e separados, ambos em idade avançada, foi que ele a amara, sim, e a achava tão bonita que só a esmagando, só a humilhando, é que conseguira se sentir seguro, e mantê-la no cabresto, expressão que a mãe dele gostava de usar.
Bem, mas o noivado se arrastou, o casamento foi marcado. Por ele ser desquitado a saida para o casamento foi arrumar igreja no cafundó do Judas que aceitava fazer esse tipo de casamento. É claro que, a esta altura, os pais dela já haviam sido notificados sobre a situação civil dele e, conforme esperado, receberam bem a noticia. Será que esses pais achavam que o namoro deles ia bem? Não percebiam o que se passava? Ela, imatura e completamente boba, sempre se esforçou para parecer feliz, não me perguntem por que. Apenas um dia o avô dela lhe perguntou se era isso mesmo o que ela queria, se ela era feliz, e ela se apressou a dizer que sim, claro, estava tudo maravilhoso e ela era felicíssima!
E assim as coisas foram se encaminhando para o mais completo desastre. Ele não perdia a chance de humilhá-la lhe contando das moças que estavam apaixonadas por ele, em todos os detalhes – e ela permitia- dizia a ela que amigos perguntavam se ela era mais velha do que ele- afinal ela já estava cheia de rugas em volta dos olhos ?????????- e ela aceitava- meu Deus, ela não tinha o menor amor próprio, a esta altura qualquer pessoa diria que ela era tão idiota que merecia o pior tipo de tratamento- ela concordaria- mas ainda não entendia por que ele queria se casar com ela.
Com casamento se aproximando, ele comprou uma casa em final de construção, bonitinha, ela adorou, e fez uma grande parte do enxoval, comprou muitas coisas, é claro, mas bordou toalhas e centros de mesa, pintou toalhas de banho, fez jogos americanos, fez cinco almofadas muito bonitas, e difíceis de fazer, mas ficaram lindas... o sofá que eles haviam comprado era branco, e ela fez as almofadas nas cores da moda de então... ah, quem viveu os anos 60 sabe que roxo batata, verde limão, azul turquesa, rosa choque e amarelo ouro eram as cores que moviam a moda, que girava em torno delas e, no sofá imaculadamente branco, ela colocou as almofadas redondas que ela tinha feito em cada uma dessas cores, e ficou realmente bonito!
Depois do casamento, da lua de mel, quando eles se mudaram para a casa, ela a arrumou e ficou tudo lindo! Se ele reparou, ninguém nunca soube... Bem, se casaram e sairam de carro para uma viagem até a Argentina, passando pelo sul do Brasil, uma viagem linda, na verdade, e até chegarem ao Uruguai até que tudo correu bem, conversavam, brincavam, mas... acontece que do Uruguai eles iam tomar um barco até Buenos Aires, e alguém teria que pegar o carro dele – era dele, nunca deles, ele sempre disse dele- e levá-lo de volta pra São Paulo, e assim ficou combinado que o irmão dele, a cunhada, e o sobrinho iriam se encontrar com eles lá no sul para fazer justamente isso. E aí aconteceu uma coisa realmente interessante: a viagem que vinha vindo tão bem azedou! Foi só chegarem as pessoas da família dele que ele começou a brigar com ela de novo, por qualquer motivo, e às vezes até mesmo sem nenhum- e a vida dela se tornou miserável outra vez. Ele e o sobrinho, um rapaz por volta de 17 anos, flertavam com outras garotas, comentavam sobre elas, tudo de maneira discreta, é claro, mas de maneira alguma despercebida, e ela, não gostando, disse a ele, e até ficou de cara virada, o que vocês pensam? Mas não adiantou nada, de fato. Ficaram alguns dias no Uruguai e, apesar de tudo, ela adorou Montevidéu,
Então, os parentes voltaram para o Brasil, eles pegaram o barco para Buenos Aires, e novamente ficou tudo bem, até chegarem a Buenos Aires, onde a irmã dele estava em um hotel com os três filhos, hotel onde os recém casados se instalaram, nos aposentos ocupados pela irmã e sobrinhos. Lua de mel cheia de parentes hem! Ah, tudo tão diferente... mas não do modo bom, se é que vocês me entendem... puxa vida, quem adivinha o que aconteceu? Hem? Hem? Ele começou a brigar com ela e dessa vez não teve como ele arrumar motivo, mesmo assim virou a cara e, pasmem- dormiu em um quarto separado. Ela com a maior cara de tacho, ainda mais que nem motivo para explicar aos outros ela tinha, a bestalhona, que se achava no dever de dar explicações, quando tinha era o direito de recebê-las!
Enfim, de Buenos eles pegaram um avião para Bariloche. Ah, estava me esquecendo de dizer, foi só saírem do hotel com os parentes que ele ficou de novo amiguinho dela, tão fofo!
Aí foi só felicidade, pegaram um navio de volta para o Brasil, fizeram amizade com um casal, foi uma viagem muito boa, até eles chegarem a Santos, onde a família dela os estava esperando- e aí a coisa desandou de vez!
A casa que ele havia comprado não estava pronta, ia demorar uns três meses ainda, então eles ficaram no apartamento de uma irmã dele, viúva, eles dormindo na cama da irmã, a irmã no sofá da sala. Ela não sabia cozinhar, afinal trabalhara fora sempre, e a mãe nunca gostara de ninguém na cozinha, dizia que atrapalhava, então ela aproveitou e começou a aprender a cozinhar, a lavar, a passar. Ele ia trabalhar, vinha almoçar, e o tempo que durava de depois do almoço até a hora dele voltar pro trabalho se tornou o pior pesadelo dela. Sentada no sofá ao lado dele, a irmã dele fazia questão, ele mudo, é claro, ela às vezes arriscando uma pergunta ou comentário, com um grunhido como resposta, e a irmã, que a tudo assistia, depois que ele saia dizia a ela o que achava, como que ela permitia uma situação dessas? Ela gostava da cunhada, a cunhada do lado dela, vendo a situação, por que será que ela nunca, pelo menos, ao menos isso, disse à cunhada olha, não vou mais sentar ao lado dele depois do almoço, vou lavar a louça, ou ao armazém comprar alguma coisa, ou me atirar da janela, já que estavam no quarto andar, mas não, punha o sorriso na cara e fazia o que a cunhada achava certo, marido em casa esposa ao lado- sempre fazendo o que os outros queriam, nunca o que ela queria, o que lhe valeu mais tarde uma síndrome do pânico e uma depressão que a acompanhou pelo resto da vida, vale a pena isso, meu Deus?
E assim foram se arrastando os meses, minto, se arrastou quase um mês, até o dia maravilhoso em que não desceu a menstruação dela – ele não tivera um filho com a outra mulher, um filho agora o faria mimá-la, afinal todos os homens mimavam as esposas grávidas, oba!
Ela foi ao médico, que confirmou, e ela ficou esperando que ele fosse buscá-la no médico; se alguém esperou ansiosamente por outro alguém na vida, esse alguém era ela... esperou para dar a notícia e ver a alegria se abrir na face dele. AHAHAHAHA!, desculpe, mas se ele fosse surdo teria havido mais reação, acho eu, e lá foi ela de volta para a casa da cunhada com o coração mais uma vez aprisionado numa decepção enorme... quem sabe mais tarde? A cunhada ficou feliz, todo o mundo ficou feliz, se ele ficou ninguém nunca soube.
A casa ficou pronta, mudaram para lá, ela faxinou e arrumou seu novo e primeiro lar, que ficou realmente lindo, embora tenha sido outra decepção para ela, parecia que ele havia nascido com aquela casa, ele olhava tudo como se já conhecesse, nada era novidade, nada digno de nota nem particularmente bonito, valha-me Deus.
Começaram a rotina na nova casa, e de vez em quando iam a um restaurante próximo à casa deles, e naquele sábado haviam combinado de ir, mas ele, quando chegou a hora, amarrou a cara mais ainda, porque vivia amarrada, diga-se de passagem, se vocês ainda não perceberam, e não se mexia. Ela se aprontou, e vendo que ele não levantava da cadeira, disse: “vamos?” aí ele disse que não estava bem, não estava feliz, estava tudo uma porcaria, não tinha vontade de sair... ? Mas chorava... escondido dele, claro, porque se ele visse ele ficaria muito zangado, não apenas zangado mas muito zangado, então se ele sabia fazia de conta que não, mas eu acho que ele não sabia, e assim foi naquela noite, não saíram, ela chorou escondido, e mais uma noite se passou. Interessante que ela ouviu da boca dele que ele não estava feliz, mas ela teve alguma reação? Perguntou por quê? Disse a ele que precisavam conversar a respeito? Ah, não, de maneira alguma, nem pensar! Por quê? Medo de viver a vida sozinha? Batalhar sozinha com uma criança pequena, sem marido? Ou covardia? Ela nunca saberá, por mais que queira, mas com certeza ela não era uma mulher forte na época, não tinha coragem de ir à luta, como muitas mulheres foram naqueles tempos, e perdeu uma grande chance de começar a gostar de si mesma e se respeitar. Se apenas ela soubesse, como sabe hoje, que aquilo poderia ter mudado toda a vida dela, mas não tomou nenhuma atitude, e a vida dela foi o que foi por causa disso.
Bem, passou-se mais uma semana, e dessa vez eles foram ao restaurante, e ele queria comer camarão e ela queria outra coisa, não se sabe o que, mas camarão não era, e como o dinheiro não era muito eles só podiam pedir um prato e como ela gostava de camarão, foi o que pediram, mas aquele camarão fez mal a ela, e olhem que ela comeu com gosto, não, como ele a acusou, de má vontade e de estar fingindo só pra se vingar dele, ela nunca foi esse tipo de pessoa, ela estava sentindo cólicas terríveis e, estando grávida, temeu pelo bebê, mas ele não acreditou e ficou bravo com ela, nem quando ela estava doente ele a tratava bem... aquela ilusão que ela tinha de que, quando vivessem juntos eles começariam a conversar tinha dado em nada? Que eles não conversavam, ele mal a olhava, numa solidão a dois que pesava, que oprimia? Ela mal conseguia respirar, tamanha era a pressão daquele sentimento... e isso, por mais incrível que possa parecer até a ela, hoje, durou quase vinte anos... como eles agüentaram? Não se sabe. Quando ela pensa naqueles tempos ela não acredita que não tenha reagido, que não tenha dito nada... pois não reagiu e não disse! Algumas vezes se rebelou e tentou dizer, mas ele era muito inflexível e ela não conseguiu mudar nada, Quanto a ele, nunca se saberá. Ela gostaria muito de mudar esta estória, e quando ela pensa no passado, na cabeça dela ela discute com ele, e no pensamento dela faz com que aconteça o que ela queria que tivesse acontecido, mas todo mundo sabe que aconteceu o que aconteceu, e nada mudará isso. Ela só espera, hoje em dia, que  possa perdoar a ele tudo o que ele fez ou deixou de fazer por ela, e pela vida deles, mas, principalmente, que ela possa perdoar a si mesma por ter permitido que tudo aquilo tenha acontecido.