quarta-feira, 10 de março de 2010

A partida

Celso Pinheiro de Oliveira

O porto de Gênova estava um verdadeiro caos naquele começo de outono de 1948.
Os preparativos para a partida do navio faziam com que passageiros, tripulantes, malas e cargas, desenvolvessem um traçado alucinante, como um enorme balé enlouquecido.

À distância, sentado sobre algumas caixas que haviam sido desembarcadas, Giuseppe observava com olhos esquecidos de quem havia deixado ali o corpo para que o pensamento pudesse voar livre.

Capannori havia ficado para trás. Suas ruas estreitas de pedras, seus amigos, sua família. Os passeios com Maria á sombra do aqueduto, os planos e promessas.
Ainda podia sentir o abraço apertado da sua mãe se despedindo. Apertado como se ela quisesse deixar um pedaço do seu corpo colado no seu, uma imaginária proteção para a longa viagem que iria realizar.

Notou nos olhos de sua mãe um marejar que a todo custo ela tentava esconder.
Seu pai trata logo de apressar a despedida. Um abraço rápido e os conselhos finais:
“Vai, filho. O caminho é longo até Gênova e o navio não irá esperar por você. Tome cuidado e lembre-se de todos os conselhos que esse seu velho pai te deu. No Brasil, seu tio Pietro vai te buscar no porto. Vai tranquilo, tudo dará certo".

Brasil? Ele preferia os Estados Unidos, país grande, desenvolvido. Mas os vistos de imigração eram impossíveis de serem conseguidos. Restou o Brasil. Uma carta do tio Pietro prometendo trabalho - em seu pequeno armazém em São Paulo - viabilizou a liberação do seu visto. De lá quem sabe não seria mais fácil chegar a América?
Ah, América! Lá sim era a terra do dinheiro. Rico, poderia mandar muito dinheiro para a sua família. As necessidades e o sofrimento iriam acabar. O Brasil seria só uma escala nessa sua viagem.

A saída de casa, um último adeus. Papà, mamma e seus três irmãos - Carlo, Giovanni e a pequena Rosa, que com seus cinco anos de idade, soluçava no colo da mãe.
Giuseppe apressou o passo. Tinha que ver a Maria, que o aguardava no caminho, perto da estação de trem.

Lá estava ela, com seus cabelos castanhos encaracolados flutuando com a leve brisa que havia.
Ele sentiu seu coração pular que nem cabrito montês ao apertá-la contra seu corpo. Beijos misturados com lágrimas, uma angústia de falar tudo, não deixar nada esquecido.
“Giuseppe, você tem certeza que tem que ir? Será que juntos, trabalhando muito, não conseguimos fazer nossa vida aqui mesmo?"
“Mas, como meu amor? Você sabe que isso é impossível. Trabalhar aonde? A vingança dos alemães, por perderem a guerra, foi destruir tudo. Nossos campos, plantações, até nossas oliveiras derrubaram! O pouco que sobrou os bombardeios americanos se incumbiram de acabar".
“Nossas fábricas trabalham com apenas trinta por cento da produção. Não há trabalho para os que ficaram e para todos os soldados que voltaram da guerra!"
“Você está certo, Giuseppe. Eu quero que você nunca se esqueça de uma coisa... Eu sou e sempre serei sua. Não importa quanto tempo demore, eu vou estar aqui te esperando! Promete que você não vai me esquecer...".
“Eu te prometo, vou voltar. Será aqui que iremos construir nossa família, nossos filhos. Eu vou voltar!".

O apito da chaminé do Dezirade resgata Giuseppe dos seus pensamentos.
Dezirade? Isso era nome para um navio?

Pegando sua mala velha de papelão, toda amarrada com corda para resistir à viagem, se junta a imensa fila que subia para o navio. Na sua grande maioria, jovens como ele, que agora se viam forçados a abandonar a sua pátria em busca da sobrevivência, deixando uma Itália destruída e com fome, fruto da ilusão do fascismo de Benito Mussolini, que havia prometido um país grande e unido.
Os horrores da guerra estavam gravados em sua mente. A morte de Don Aldo Mei e o fuzilamento de mais de quinhentas pessoas, pelos alemães da SS, no vilarejo de Sant'Anna em Lucca, ainda faziam parte das suas noites de insônias. Aos vinte e sete anos tinha a sensação de já ter vivido cinquenta.

Acomodando-se em um canto do convés, Giuseppe espera a partida do navio. Sente o peito apertado, a boca seca. Uma sensação de angústia tomando conta de seu corpo.
Para ele era como se estivesse entrando em um túnel escuro, sem saber quando iria sair e o que iria encontrar. Todo o peso da sua decisão de partir havia se transformado na grande dúvida daquele momento.
Fecha os olhos e tenta guardar os últimos sons e perfumes da sua terra. O badalar do sino da igreja de San Gennaro, o perfume das oliveiras e vinhedos, o sabor da zuppa di farro da sua mãe. Quase pode sentir o gosto do feijão coberto pelo mais saboroso azeite do mundo.

No caís, as últimas amarras são soltas e vagarosamente o navio começa a se afastar.
Acenos e lágrimas são trocados por quem fica e por quem parte.
As pessoas e o caís vão diminuindo, cada vez mais, de encontro com o horizonte.
Mas as vistas e pensamentos de Giuseppe continuam longe. Estão nos campos da Toscana, na sua pequena Capannori, comuna de Lucca.

Uma lágrima, até então contida, escorre por sua face. Única testemunha de uma despedida que nunca terá fim.

"Eu voltarei, eu juro que voltarei!"

Minha avó agora é velha

Patrícia Diguê


Quando nasci, minha avó já era velha. Eu com zero ano e ela com seus cinquenta e poucos. Ainda lembro que, lá pelos meus seis, sete anos, reparava em suas mãos manchadas no fogão, nos cabelos grisalhos e nas rugas do rosto e da boca. Ela já era meio gordinha também.

Puro engano de um olhar infantil. Passados cerca de 30 anos, agora sim a descobri realmente velha. E foi assustador, me provocando tristeza (um pouco de raiva também), pena e profundos questionamentos sobre o sentido da vida.

Havia talvez uns dois anos que não a via. Já quase aos 80 e teimosa que só decidiu se mudar para outro estado, Rio Grande do Norte, longe de seus familiares em São Paulo. Construiu casa idêntica por aquelas terras (geminada, com um quarto em cada extremidade e cozinha e sala conjugadas). É possível andar no escuro em qualquer uma de suas casas. Todas iguais e com os mesmos móveis de décadas.

Após as aventuras por aquelas bandas e eternamente insatisfeita, outra mudança. Desta vez, Bahia. Tudo na companhia do anjo do meu avozinho, pobre coitado. Até que, como diz minha mãe, a “porca torceu o rabo”, ou seja, tiveram mesmo que pedir ajuda. Doentes e sozinhos, apelaram para as duas filhas, que prontamente foram buscá-los e os alojaram nas proximidades.

Neste dia, ao chegar em casa, levei o susto. Ela não era mais a avó que, apesar das rugas e manchas, fazia comida para os netos, ia ao supermercado, limpava a casa e costurava.

Agora seu olhar estava longe, o corpo esquálido e murcho, sem curvas nem mesmo na barriga. Os cabelos já haviam passado do branco para o amarelo, cor de sujo. O cheiro era ruim, o hálito também. Lembrei de Amor nos Tempos do Cólera, de Gabriel García Marques – no final da história, quando os protagonistas finalmente se reencontram sentem o cheiro da velhice.

Pode parecer duro, mas quando ficamos muito velhos cheiramos a coisa degradada, a alguma coisa descascando. A pele não tem mais brilho, é seca e ruim de tocar. Os cabelos se endurecem e o olhar afasta em vez de atrair. O corpo se arrasta.

Minha avó tem dificuldade para sentar, para levantar, para subir escadas. Não faz mais nada em casa. Suas manias ficaram piores e agora faz até travessuras de criança. Precisa de ajuda para ir ao banheiro e tomar banho. Não sabe muito bem que dia está, mas vê na televisão que o presidente é o Lula e morre de raiva.

Tudo isso me fez constatar que a vida toda estive errada sobre ela ser velha. Além desta descoberta, fiz uma outra, o mundo só se importa e presta atenção pelo que é novo e radiante. Observo minha sobrinha de três anos em meio aos parentes na sala. Qualquer gesto dela enche os outros de curiosidade.

Portanto, somos isso, corpos em constante decomposição e facilmente substituíveis. Já que todos apodreceremos, para que brigar tanto? O melhor caminho é amar as pessoas como se não houvesse amanhã, parafraseando Renato Russo – aquele cantor da época em que eu ainda nem pensava nestas coisas...

O alívio da canjica

Patricia Diguê


Alguém pode me ajudar na angústia de estar sempre em falta? Hoje esta idéia me atormentou. Percebi que não dou mesmo conta deste triturador de carne que é a vida, como define bem um colega jornalista. “Não adianta, a gente entra no moedor de carne e não consegue fazer mais nada”, filosofa ele sempre que me vê entre lamúrias existenciais.

É uma pesada culpa que me persegue em todo canto, mesmo que fuja para longe. Aliás, fugir piora tudo, porque a falta se amplifica. Tem a mãe que reivindica uma visita. “O que custa dar uma passadinha aqui de vez em quando?”. Tem a avó que já está bem velhinha e em cujo túmulo com certeza vou chorar de tanta culpa por não ter ido vê-la mais vezes. “Você é ocupada né?”. Também tem a sobrinha: “Tia, senta aqui e assiste desenho comigo!”. Sento 10 minutos: “O que são 10 minutos?”. Aí chego atrasada no trabalho, nem olho direito para os colegas: “Pô, e aquela cerveja?”. Percebo que com alguns não troco uma palavra há meses, mesmo vendo todo dia. “Ficou metida, não fala com os pobres?”. E o MSN que não entro, as mensagens do Orkut que não respondo, o blog que não atualizo, os telefonemas que ficam para depois? E os l ivros e revistas não lidos, as fotografias sem organizar. A lista continua: amigos de infância e o resto da família. O vizinho então? A empregada que só ouve bom dia e tchau. O filho do amigo que já cresceu e nem fralda dei, a amiga que ficou grávida e nem barriga vi. Os aniversários, batizados, casamentos, chás, bodas que faltei. “Você perdeu o bolo!”. As datas que esqueço e disfarço. Os presentes que não dei. As baladas que recusei. De tanto me tentar presente, me sinto sempre ausente, negligente, indiferente, inexistente, indolente...

Onde entra a canjica? Acontece que também carrego culpa por não cozinhar para as pessoas queridas, como manda o figurino. Não faço bolo de chocolate para os irmãos, nem almoço de fim de semana ou um sopão nas noites frias. Então hoje tomei uma decisão. Resolvi cozinhar uma canjica. Perdi alguns minutos no supermercado. Na hora do almoço, corri para o Compre Bem. Deu um alívio danado. Estava tudo lá na sacola: cravo, canela e leite condensado.

Descobri que os benditos grãozinhos precisam ficar de molho de um dia para outro. Tudo bem. Deixei-os na água como explicam no pacote. Devido às altas horas coloquei um bilhete na geladeira para que o primeiro que acordar coloque a canjica no fogo, aí é só misturar os outros ingredientes. Amanhã de manhã perco uma horinha, chego de novo atrasada, mas a canjica sai.

Se esta crônica levar alegria ou servir de alívio para meia dúzia de amigos, já estou contente. Serão menos meia dúzia para visitar.

Tristeza e globalização

Patrícia Diguê


Ando meio triste estes dias, como todo mundo às vezes fica triste. O problema é que encasquetei com a raiva que ao mesmo tempo sentia por estar triste e fiquei tentando entender o porquê. Pensei tanto que até esqueci por que mesmo estava triste. Mas o problema é que fiquei ainda mais revoltada com a conclusão que cheguei.

Se não bastassem todas as obrigações que a vida nos impõe, a gente ainda precisa mostrar que é feliz. Esta coisa virou uma obrigação mesmo. Apenas sorrir está na moda. Tristeza é demodé. Aí, fica todo mundo perdido, sem saber quem realmente está triste e precisa de ajuda. Porque quem está triste de verdade tem medo de dizer e pedir socorro. O que iam pensar? “Oi, tudo bem? Tudo bem.”

Hoje, no início da noite, estava realmente triste, parecia que até ia chorar, credo! Aí chegou o chefe (um dos) e tive que abrir um sorrisão, daqueles super espontâneos, sabe? Até saiu um som do sorriso. Outro dia estava p. da vida com não lembro o quê e, como de costume, chega alguém: “Melhora esta cara”. Ou então: “Passa um batom”. Eles são os fiscais desta lei velada de irradiar bem-estar 24 horas por dia, 365 dias por ano.

Fiquei pensando por que olhos caídos e lágrimas são tão discriminados? Afinal, como defendeu com bons argumentos Darwin, algumas emoções (incluindo a tristeza) são inatas dos seres humanos. (Traduzindo: certas emoções são universais, e não produtos da cultura. Ele conseguiu provar isso basicamente mostrando que as reações em relação a certos sentimentos são idênticas aqui e na Conchinchina - afinal, este lugar existe?)

Deveriam inventar a cota de tristeza. Pronto, você tem direito de ficar triste 30 dias em um ano, por exemplo. Poderiam até criar uma licença-tristeza. Afinal, não é nada fácil sorrir nestes dias. Proporei isso às centrais sindicais.

Chorar em público então... Isso é terminantemente proibido. Só no banheiro e olhe lá. Trate de limpar esta cara, jogar água gelada e passa um pózinho.

Além de fora de moda, ficar triste gera culpa. Uma culpa globalizada.

Como posso ficar triste enquanto há centenas de desabrigados em São Paulo por causa da chuva; outros cento e tantos mortos no Iraque; milhões de famintos pelo mundo; mulheres sendo apedrejadas no Oriente Médio; outros milhões desempregados; o urso panda em extinção; gente morrendo em queda de avião; meu avô lá na esquina sofrendo de Alzheimer; zilhões com doenças terminais; minha amiga se divorciando; crianças pedindo dinheiro nas ruas; velhos caçando latinhas nos lixos; gente dormindo embaixo de jornal; filho matando pai; menino queimando índio. E o desmatamento? E o aquecimento? E o descaramento? Egoísmo, cinismo, banditismo! Malandragem, lavagem, galinhagem! Guerra, sem-terra, favela!

Por que mesmo eu estava triste?
Celular calibre 38



Patrícia Diguê



Tenho uma amiga que apaga os números dos celulares dos ex (namorados, ficantes, namoridos e outras aberrações) imediatamente após a confirmação de rompimento. Com isso, não corre o risco de ligar para nenhum deles quando tiver insônia ou estiver embriagada no boteco. Além do mais, isso também serve de vingança em caso de algum deles resolver telefonar. “Quem tá falando? Ah, desculpe, não tenho mais o seu número”. Realmente, este aparelhinho é uma verdadeira arma pelas madrugadas afora, e, assim como as de verdade, podem fazer grandes estragos.

- Alô (zzzzzzzz)!

- Oi, tudo bem? Te acordei, né?

- Que horas são?

- Sete horas.

- Que dia é hoje?

- Segunda-feira. Desculpe, liguei porque achei que você não fosse atender...

- Mas eu deixo o celular do lado da cama pra despertar. Olha, tô morrendo de saudades de você.

- Eu também tô morrendo de saudades de você. Desculpe, só queria deixar a ligação registrada pra você se lembrar de mim quando acordar, tinha certeza que não ia atender.

- Eu já penso em você todos os dias quando acordo...

- Eu também penso em você todos os dias quando acordo...

- Onde você está?

- Naquele lugar que a gente passou, sabe?

- Ah... Acordou agora ou está virado? Tá tudo bem?

- Tô virado, vim de uma festa e ainda tô bebendo chopp. Mais uma vez, fiquei pensando em você, na minha paixão distante.

- Vem pra cá...

- Quem dera!

- Vem no feriado!

- Não posso.

- Por favor, não me liga mais não...

- O quê? Não tô escutando...

- Não me liga mais, por favor.

- Tá bom...

- Um beijo.

Entre as veias de São Paulo

Patrícia Diguê



Um mês em São Paulo. Entre as dezenas de características da Cidade e comportamentos dos paulistanos que me surpreendem (às vezes negativa, outras positivamente), o que mais me chama a atenção é a incrível capacidade que o pessoal tem para inventar formas de ganhar a vida. Quem por aqui já circula há muito tempo, talvez nem pare para reparar nestas coisas. Mas eu me espanto toda hora.
Numa das minhas voltas pra casa, num dos muitos dias chuvosos de São Paulo, me surpreendi com a entrada pela porta de trás do ônibus de um homem carregando um enorme saco. Mostrando contagioso bom humor, se pôs a botar saquinhos de Doritos nas mãos das pessoas. Até parecia promoção. "Doritos e pacotes de bolacha de chocolate, qualquer um R$ 1,00".
Espremendo-me no meio daquela gente cansada do dia todo de trabalho, achei uma maravilha o serviço de bordo. E comi feliz o salgadinho. Dali foi mais de uma hora de viagem, num trecho que normalmente levaria 20 minutos.
Fiquei olhando para o vendedor um tempão. E imaginando que aquele cara era muito mais esperto do que eu, infinitamente mais criativo e com uma inteligência emocional incalculavelmente mais desenvolvida. Sem falar, que não demonstrava qualquer indício de timidez, falando calmamente em meio àquele público todo. “E tá crocante”, comentou uma moça do meu lado, que também parecia bem feliz.
Outra garota, que estava antes da roleta, gritou e pediu dois. Foi nessa hora que notei que dentro dos ônibus há cesto de lixo, bem do lado do cobrador. Vi um homem jogando o saquinho vazio lá e fiquei contente de saber que a educação às vezes chega às camadas menos favorecidas (só às vezes, porque ontem uma garotinha jogou um pacotinho de bala pela janela do metrô – o saquinho deu um voo rasante na senhora de trás, que ficou sem entender de onde havia partido tal ameaça).
A complacência dos cobradores em relação a esses lutadores da vida também é admirável. Parece existir uma condescendência velada em relação a essas milhares de pessoas que penetram em pequenas frestas do jogo social a fim de levar comida todos os dias pra casa. É assim em relação aos camelôs, por exemplo, e vendedores ambulantes em todo o canto.
Bom, em se falando de criatividade, não há concorrência para os camelôs. Eles trocam de produtos conforme a necessidade do cliente (vendendo guarda-chuva quando está chovendo, por exemplo), mudam de local conforme o movimento, driblam a fiscalização etc.
Mas foi outro novo “negócio” que também me encantou pela criatividade. Nas esquinas de quase todos os pontos de ônibus movimentados, você encontra uma barraquinha de café da manhã. São a maioria mulheres, que trazem, em um carrinho de feira, garrafas térmicas com leite e café, e também pães e bolos caseiros. As bancas ficam lotadas.
Comentei tudo isso com uma amiga, que disse que não se trata de novidade. “Você nunca tinha visto? Nossa, é normal”.
Não, não é normal não. Só pensei, pra não contrariar sua visão viciada de achar que isso tudo “é assim mesmo”. Pessoas se virando, vendendo tudo o que você pode imaginar pelas ruas - de abacaxi cortado a cadarço, de lenços a isqueiros, de trufas a óculos de sol -, é sinônimo de uma sociedade doente. Onde as pessoas não têm acesso ao mercado formal de trabalho e se encontram abandonadas pelo poder público. Que, por tudo o que a gente já sabe, não consegue se organizar para amparar quem precisa de apoio para levar uma vida minimamente digna.
Quando reflito sobre tudo isso, é inevitável lembrar dos lugares por onde passei nos últimos dois anos. Claro que a Europa possui uma democracia muito mais madura que a nossa, mas é triste constatar que em lugares como a Inglaterra, por exemplo, nem cachorros você vê abandonados na rua. Deixar uma criança desamparada então... soa surreal para eles, coisa de filme. Velhinhos beirando aos 80 anos debaixo de sol carregando cartazes de propaganda talvez virasse manchete de jornal por lá.
Que daqui pra frente, meu coração não fique anestesiado dentro desta grande selva, que continue como agora, se partindo em uma esquina e voltando a se encher na próxima. Assim é São Paulo.

terça-feira, 9 de março de 2010

A despedida

Celso Pinheiro de Oliveira


O porto de Gênova estava um verdadeiro caos naquele começo de outono de 1948.
Os preparativos para a partida do navio faziam com que passageiros, tripulantes, malas e cargas, desenvolvessem um traçado alucinante, como um enorme balé enlouquecido.

À distância, sentado sobre algumas caixas que haviam sido desembarcadas, Giuseppe observava com olhos esquecidos de quem havia deixado ali o corpo para que o pensamento pudesse voar livre.

Capannori havia ficado para trás. Suas ruas estreitas de pedras, seus amigos, sua família. Os passeios com Maria á sombra do acqueduto, os planos e promessas.
Ainda podia sentir o abraço apertado da sua mãe se despedindo. Apertado como se ela quisesse deixar um pedaço do seu corpo colado no seu, uma imaginária proteção para a longa viagem que iria realizar.

Notou nos olhos de sua mãe um marejar que a todo custo ela tentava esconder.
Seu pai trata logo de apressar a despedida. Um abraço rápido e os conselhos finais:
“Vai, filho. O caminho é longo até Gênova e o navio não irá esperar por você. Tome cuidado e lembre-se de todos os conselhos que esse seu velho pai te deu. No Brasil, seu tio Pietro vai te buscar no porto. Vai tranquilo, tudo dará certo".

Brasil? Ele preferia os Estados Unidos, país grande, desenvolvido. Mas os vistos de imigração eram impossíveis de serem conseguidos. Restou o Brasil. Uma carta do tio Pietro prometendo trabalho - em seu pequeno armazém em São Paulo - viabilizou a liberação do seu visto. De lá quem sabe não seria mais fácil chegar a América?
Ah, América! Lá sim era a terra do dinheiro. Rico, poderia mandar muito dinheiro para a sua família. As necessidades e o sofrimento iriam acabar. O Brasil seria só uma escala nessa sua viagem.

A saída de casa, um último adeus. Papà, mamma e seus três irmãos - Carlo, Giovanni e a pequena Rosa, que com seus cinco anos de idade, soluçava no colo da mãe.
Giuseppe apressou o passo. Tinha que ver a Maria, que o aguardava no caminho, perto da estação de trem.

Lá estava ela, com seus cabelos castanhos encaracolados flutuando com a leve brisa que havia.
Ele sentiu seu coração pular que nem cabrito montês ao apertá-la contra seu corpo. Beijos misturados com lágrimas, uma angústia de falar tudo, não deixar nada esquecido.
“Giuseppe, você tem certeza que tem que ir? Será que juntos, trabalhando muito, não conseguimos fazer nossa vida aqui mesmo?"
“Mas, como meu amor? Você sabe que isso é impossível. Trabalhar aonde? A vingança dos alemães, por perderem a guerra, foi destruir tudo. Nossos campos, plantações, até nossas oliveiras derrubaram! O pouco que sobrou os bombardeios americanos se incumbiram de acabar".
“Nossas fábricas trabalham com apenas trinta por cento da produção. Não há trabalho para os que ficaram e para todos os soldados que voltaram da guerra!"
“Você está certo, Giuseppe. Eu quero que você nunca se esqueça de uma coisa... Eu sou e sempre serei sua. Não importa quanto tempo demore, eu vou estar aqui te esperando! Promete que você não vai me esquecer...".
“Eu te prometo, vou voltar. Será aqui que iremos construir nossa família, nossos filhos. Eu vou voltar!".

O apito da chaminé do Dezirade resgata Giuseppe dos seus pensamentos.
Dezirade? Isso era nome para um navio?

Pegando sua mala velha de papelão, toda amarrada com corda para resistir à viagem, se junta a imensa fila que subia para o navio. Na sua grande maioria, jovens como ele, que agora se viam forçados a abandonar a sua pátria em busca da sobrevivência, deixando uma Itália destruída e com fome, fruto da ilusão do fascismo de Benito Mussolini, que havia prometido um país grande e unido.
Os horrores da guerra estavam gravados em sua mente. A morte de Don Aldo Mei e o fuzilamento de mais de quinhentas pessoas, pelos alemães da SS, na porta Sant'Anna em Lucca, ainda faziam parte das suas noites de insônias. Aos vinte e sete anos tinha a sensação de já ter vivido cinquenta.

Acomodando-se em um canto do convés, Giuseppe espera a partida do navio. Sente o peito apertado, a boca seca. Uma sensação de angústia tomando conta de seu corpo.
Para ele era como se estivesse entrando em um túnel escuro, sem saber quando iria sair e o que iria encontrar. Todo o peso da sua decisão de partir havia se transformado na grande dúvida daquele momento.
Fecha os olhos e tenta guardar os últimos sons e perfumes da sua terra. O badalar do sino da igreja de San Gennaro, o perfume das oliveiras e vinhedos, o sabor da zuppa di farro da sua mãe. Quase pode sentir o gosto do feijão coberto pelo mais saboroso azeite do mundo.

No caís, as últimas amarras são soltas e vagarosamente o navio começa a se afastar.
Acenos e lágrimas são trocados por quem fica e por quem parte.
As pessoas e o caís vão diminuindo, cada vez mais, de encontro com o horizonte.
Mas as vistas e pensamentos de Giuseppe continuam longe. Estão nos campos da Toscana, na sua pequena Capannori, comuna de Lucca.

Uma lágrima, até então contida, escorre por sua face. Única testemunha de uma despedida que nunca terá fim.

"Eu voltarei, eu juro que voltarei!"