sexta-feira, 23 de julho de 2010

A roda da vida.

Celso Pinheiro de Oliveira


O sol começava a romper o horizonte, expulsando do céu os últimos traços da noite.
A areia branca fundia-se com o dourado do mar, reflexo da luz do alvorecer.

Gaivotas e pequenos pássaros ciscavam na praia a procura do café da manhã, enquanto a brisa, ainda fria, provocava arrepios nas pessoas que começavam a ocupar seus espaços na areia.

Juliano caminhou lentamente em direção a sua barraca, já devidamente arrumada e com as cadeiras dispostas em fila, eficientemente preparada pelo seu caseiro.

Sentado, fecha os olhos e inicia a sua tarefa matinal...escutar o silêncio do amanhecer.
O som das ondas funcionava como um mantra, que por repetição, conduzia a sua mente em uma viagem astral.

Aquela era a hora do dia que Juliano mais gostava. O entardecer tinha seus encantos, mas, para ele, simbolizava a luz cedendo espaço para escuridão.
O amanhecer era exatamente o contrário. A luz gerando a vida, a natureza tomando seu lugar na busca do eterno recomeçar.

Assim como as pessoas. Acordar e se preparar para mais um dia, no giro da roda do destino, que a cada um de nós conduz ao final correto.
O que realmente importa? O tempo vivido ou como você viveu o seu tempo?

Juliano não podia reclamar. Uma mulher amorosa e dedicada, um casal de filhos e duas netas.Uma família feliz e plena de amor.

A vida lhe trouxera mais ganhos do que perdas. Do alto dos seus sessenta e sete anos ainda se sentia com vinte. Não se reconhecia nas fotos atuais. Aquele senhor de cabelos brancos, com a calvície avançando velozmente, não podia ser ele. O espelho, seu fiel escudeiro, parecia ser mais amigo. Talvez porque refletisse o Juliano que ia pela alma e não o do RG.

Já dizia o pensamento popular "se você colocar um sapo em uma panela com água fervendo, ele pula e foge. Já se você colocá-lo na panela com água fria e deixá-la ferver, ele morrerá queimado".

Será que era isso? O espelho era a panela com água fria que não o deixava perceber o seu próprio envelhecimento?

Pensamento ruim se espanta. Juliano volta a observar a praia, agora já com a sua população acrescida de várias crianças, trazidas por suas mães em busca do "sol do bem", aquele a ser tomado antes das dez horas da manhã, que ainda não estava contaminado pelos poderosos raios ultravioleta.

Duas meninas brincando com seus baldinhos e forminhas de peixes o fizeram lembrar-se de suas netas.

Luisa e Valentina, dois presentes embalados em forma de crianças.

Helena, sua filha e mãe de Luisa conseguira gerar uma verdadeira cópia sua. Pele e cabelos mais claros e a mesma meiguice, que sempre conseguia transformar em cúmplices de suas travessuras todos os que estavam em sua volta.
Valentina, moreninha de olhos inquietos, já era uma boa mistura de seu filho Danilo com a mulher. Obstinada como a mãe e objetiva como o pai, estava sempre na liderança de todas as brincadeiras.

Uma bela família! pensou Juliano. A vida completando seu ciclo. De filho à avô num piscar de olhos.

Como a vida pudera passar tão depressa?

Ainda se via, criança pequena, cuja maior preocupação era saber se, ao crescer, conseguiria dar nós em seus sapatos.

Seu pai havia morrido cedo. Juliano não havia completado três anos.
Apesar de muito criança para sentir toda a dor da perda, Juliano carregou, em grande parte da vida, o aleijão da ausência. Era como se algo sempre faltasse, como tentar calçar um sapato em um pé que não existia.

Passou por todas as inquietações e dúvidas da infância e da adolescência de uma maneira autodidata.
Como serei recebido pelos alunos da minha nova classe na escola? Devo pedir ela em namoro? Como será a minha primeira transa? Que carreira devo seguir?

Quantas vezes não se pegou, em momentos da mais absoluta insegurança, a fazer perguntas ao pai ausente; se a atitude que havia tomado era certa, se o caminho escolhido era o melhor e, acima de tudo - a mais recorrente de todas as questões - se aos olhos do pai ele era um bom filho.

Quando se tornou pai tudo mudou. Não era mais ele quem fazia as perguntas.Passara a ser responsável pelas respostas. A roda da vida completara mais uma volta.

-Olha o sorvete do Rochinha!

O grito do vendedor interrompe as lembranças de Juliano.
A praia agora já estava repleta. Como cerejas de um bolo gigante, guarda sóis coloridos dos visitantes entremeavam o branco da areia e das barracas dos proprietários de casas.

Juliano decide dar uma entrada na água para se refrescar do calor. O dia prometia ser muito quente.

O mar calmo, quase sem ondas. Na linha do horizonte os grandes transatlânticos pareciam pequeninos desenhos a se moverem lentamente, cortando os espaços entre as ilhotas que, pela distância da praia, pareciam estar muito próximas.

Na posição em que Juliano estava era possível ver a sua casa, "pé na areia" para usar uma expressão comum aos corretores de imóveis.

Parece que a casa acordara. Luisa e Valentina, com suas bóias de braço, pulavam na piscina, brincando de "bomba”, cada uma tentando fazer espirrar mais água que a outra.

Helena e Danilo, com seus respectivos pares - Fabio e Bia - terminavam o café da manhã e se preparavam para a difícil tarefa de retirar as meninas da piscina e fazê-las comer alguma coisa antes de irem para a praia.

Uma família feliz. Amor e amizade unindo as pessoas da vida de Juliano.

Ele era parte de tudo isso. Percebe que se não fosse todos os obstáculos que teve que transpor, talvez não tivesse a capacidade necessária para chegar até ali.
Que as provações são degraus colocados nos caminhos das pessoas para conduzí-las ao alto.

A figura do pai volta ao seu pensamento. Sente o peito aquecido como se estivesse recebendo um abraço, sendo colocado no colo, como um dia certamente aconteceu.

-É pai. Acho que aprendi a dar os nós dos meus sapatos!