quinta-feira, 20 de maio de 2010

Se hoje fosse meu último dia de vida

Celso Pinheiro de Oliveira


"Ok, foi um prazer almoçar com você. Desejo sucesso nesse seu empreendimento. Ousado para esses tempos que vivemos, mas bastante promissor". Os votos, seguidos por um rápido aperto de mão, demonstravam a pressa da partida.

-"Certo, Marcos. Qualquer novidade você me liga".

-"Como eu te disse estamos com todos os investimentos suspensos. Mas não se preocupe, vou deixar o seu caso em follow-up, ok ? - Marcos já descia a escada rolante do shopping em busca do estacionamento no andar inferior.

"Manter em follow-up" - tradução moderna- colocação de todo o material entregue na gaveta inferior da mesa de trabalho, mais conhecida como arquivo morto.

A minha frustração era enorme. Tinha grandes esperanças no projeto com a empresa de Marcos e, pelo rumo que tomou nossa conversa, a certeza da perda do negócio era evidente.

Expressões como investimentos suspensos, contenção de despesas, adiamento temporário de projetos - após a quebra do Lehman Brothers - tornaram-se as mais usadas no mundo de negócios pós crise.

Maldita hora que havia decidido abrir a minha própria empresa. Nos dois últimos anos vi todas as minhas economias serem reduzidas a pó. E o que era ainda pior. Afastado do mercado de trabalho por esse período, entrara na seleta lista dos desaparecidos para todos os head hunters do país, o que fazia da possibilidade de encontrar um novo emprego uma esperança bastante remota.

Minha única conquista havia sido uma arritmia cardíaca e a programação para a colocação de um marca passo.

A cirurgia, que deveria ter sido realizada na semana passada, estava marcada para amanhã. Havia conseguido o adiamento em função daquele almoço, na expectativa de entrar no centro cirúrgico com a calma do negócio acertado.

Resolvi andar pelas alamedas do shopping. Não queria levar essa nova derrota para casa. Ainda mais agora, na véspera da minha operação. A tensão que dominava a minha mulher e as minhas filhas poderia aumentar ao verem o desânimo que tomava conta de mim.

No canto do corredor em que estava, ao lado da máquina de retratos automática, ficava o engraxate. Achei que os meus sapatos mereciam uma graxa, na tentativa de fazer brilhar alguma coisa que fizesse parte da minha pessoa.

O velho engraxate, que estava sentado na cadeira do freguês, levanta-se com dificuldade e respeitosamente vira a almofada do assento para que eu pudesse me acomodar.

Com a mesma dificuldade senta-se em seu banquinho, aos meus pés, dando início aos trabalhos. Cerca as minhas meias com retângulos de cartolina e lentamente começa a escovar os sapatos, preparando-os para a graxa que viria na sequência.

Calculei que ele tivesse uns sessenta e cinco anos, embora aparentasse pelo menos uns dez a mais. Jaleco azul desbotado por sobre a camisa de gola puída. Unhas encardidas pela graxa de anos, dedos trêmulos.

Que dureza deve ser chegar a essa idade, depois de tanto trabalhar, sem conseguir encontrar o descanso merecido após anos intermináveis de batalha pela vida.

Quantos desses anos foram de alegria?, de divertimentos?, de encontros?, de boas amizades?

O pensamento me fez refletir sobre a minha própria situação. Na operação para colocação do marca passo e a suas prováveis implicações.

É interessante que quando você atravessa uma má fase, instantes de incertezas e falta de confiança, comuns em várias etapas da vida, parece que tudo adquire um tom pessimista. Você se sente afundando no mar. Quanto mais esforço você faz para retornar a superfície, mais é puxado para o fundo. Um moto contínuo do qual não se pode libertar.
Você não consegue achar a saída, que muitas vezes pode estar bem na frente de seus olhos.

Mas, e se hoje fosse o último dia da minha vida?

Dizem que um homem deve realizar três coisas antes de morrer. Escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho.

O livro (o ditado não especifica a qualidade literária necessária) eu já havia escrito ainda garoto. A única manifestação que recebi sobre ele, partiu da minha tia - angelical revisora da baboseira - que ao ver o número de personagens que eu matava no decorrer da história, previu que o livro terminaria por falta de personagens.

A questão de plantar uma árvore foi resolvida com um ressequido pinheiro, comprado no CEASA como árvore de natal, que encontrou na boa terra do sítio de minha mãe, um excelente berço para o seu desenvolvimento.

Quanto ao ter um filho, a minha resposta veio em dobro. Duas belas filhas que trazem todos os dias o sol a minha vida.

Pois bem, se tudo está feito, o que resta?

E se hoje fosse o último dia da minha vida?

Já que pagar as dívidas não me parecia uma proposta sensata, levando-se em conta a urgência da minha partida, detive-me a elaborar uma lista de sonhos a realizar nesse meu último dia.

Levantar mais um "papagaio" no banco e comprar aquele carro importado que sempre sonhei possuir.

Comprar uma lancha super potente e navegar rumo ao horizonte até que o fim da gasolina encontrasse a linha do horizonte.

Juntar os melhores amigos e sair em noite de farra e festa até o raiar do dia.

Fazer o gol no jogo do campeonato que nunca disputei, compor a música que nunca cantei, beijar a mulher que nunca conheci...

Toc, toc, toc.

-Dotô?

Toc, toc, toc.

-Dotô?

A batida da escova de sapato na caixa do engraxate interrompe os meus pensamentos.

-"Desculpa, dotô. Não queria incomodar mas tá pronto!"

-" O dotô tava viajando?"

Estendo-lhe uma nota de 10 e mando guardar o troco.

"É, meu amigo. Uma viagem que já devia ter feito faz tempo!"

A resposta estava clara.

Se hoje fosse o último dia da minha vida, voltaria para o escritório para acertar todos os problemas do dia. Com calma, equilíbrio e serenidade.
Voltaria mais cedo pra casa e ficaria junto da minha mulher e das minhas filhas. Com muito amor e alegria.

Faria tudo igual ao que sempre fiz. Porque vivi a vida que quis viver, lutei as lutas que eu quis lutar, amei as pessoas que eu quis amar.

O mais importante para se fazer em todos os dias de sua vida é ser feliz. E o amanhã, ora o amanhã.... sempre existe.

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