quinta-feira, 10 de maio de 2012

O quadro das almas


Celso Pinheiro de Oliveira



Antonio entra em casa batendo a porta por trás das costas.
Deposita o molho de chaves no prato de estanho espanhol da mesinha do hall e,apesar da escuridão reinante no apartamento, segue em frente sem acender nenhuma luz.
Mania sua desde rapazola, andar pela casa no escuro. Talvez para demonstrar um conhecimento absoluto do ambiente, de cada móvel ou objeto ali presente. Afinal, a casa o abrigara a maior parte da vida.
Casa de seus pais, que com morte dos velhos e a sua separação recente, voltara a ser o seu
porto seguro.
Evita a sala de estar e a cozinha tomando o rumo do escritório.
Nada ali mudara. Tudo estava igual, cada coisa ocupando o mesmo lugar
que o seu pai destinara.
A mesa escura de mogno, a cadeira de couro “craquelado” pelo tempo, as duas cadeiras de espaldar
alto para receber os privilegiados que tinham acesso aquele santuário. Estantes que iam do chão ao teto repletas de livros. Eça de Queiróz, Machado de Assis, Bandeira, Shakespeare, Kafka, Edgar Allan Poe, Scott Fitzgerald, Wilde e Joyce, todos a dividir o espaço com dezenas de autores de livros de direito, uma mescla total de escolas e tendências.
Parecia se ver sentado naquelas cadeiras, com as pernas de guri a balançar sem alcançar o chão, a ouvir o
discurso de seu pai:
- Meu filho, esse é o verdadeiro tesouro do mundo. Por essas estantes escondem-se peças de ouro, diamantes e rubis! É o conhecimento, o pensamento humano vivo em cada linha escrita. O poder que emana dessas obras é imensurável. A mente é um labirinto complexo, cheia de armadilhas e saídas falsas. Os livros são os mapas adequados para ajudar a desvendar todos esses mistérios. Lembre-se sempre disso, meu filho, quando se tornar um advogado como seu pai. Criminalista, é claro!
Coitado do Dr. Carlos Bulhões. Morrera sem ver o filho compartilhar duas de suas paixões – o direito criminal e o amor pelos livros.
Antonio, ou melhor, Dr.Antonio Bulhões, jamais tivera o mesmo amor pelos livros, e, quanto ao direito, havia preferido advogar na área societária, onde as vantagens financeiras eram maiores.
Antonio abre a porta do único móvel que não fazia parte da decoração original. Um prolongamento da estante de apoio que servia para esconder uma pequena geladeira. Apanha o copo, dois cubos de gelo e serve-se de uma generosa dose de uísque.
O círculo estava se fechando! – pensa Antonio – afrouxando a gravata e buscando o conforto da cadeira.
O tremor das mãos denotava o estado de espírito, parceiro constante dos últimos dias. O suor começava a pontilhar a testa e nem o álcool conseguia normalizar o batimento cardíaco.
As coisas haviam fugido do seu controle. A sua falcatrua estava prestes a ser descoberta pelos auditores da multinacional em que trabalhava.
Um plano tão bem engendrado! Apenas duas pessoas envolvidas, ele e o contador da empresa, com garantia de uma boa remuneração paralela.
Um trabalho muito bem planejado, sem margens para erro.
Em cada contrato que a sua empresa realizava com seus parceiros, havia a previsão do adiantamento de uma quantia por parte da empresa solicitante, a título de garantia do acordo. Após a efetivação do negócio, a quantia seria devolvida ao parceiro com os devidos juros de mercado. Como normalmente essas negociações demoravam um tempo grande para serem finalizadas, ele e o contador desviavam as quantias para o mercado de alto risco. Na hora de devolver faziam o resgate da aplicação, devolviam a quantia com os juros normais e embolsavam a diferença.
Limpo, sem problemas, ninguém perdia!
Tudo ia bem até resolverem apostar todas as fichas naquela maldita aplicação de fundos chineses. A coisa desandou e tudo foi por água a baixo.
Os parceiros da empresa começaram a solicitar as devoluções dos adiantamentos e eles sem dinheiro para fazer o reembolso.
Até aquele momento eles haviam conseguido acalmar os mais exaltados, mas com os auditores no calcanhar do contador era questão de horas para que ele abrisse a boca e toda a tramóia fosse desvendada.
-Não coloque todos os ovos na mesma cesta! Era a frase preferida de Daniela, sua ex mulher.
Na verdade a separação de Daniela, o novo casamento dela com Charles, um canadense que a arrastou para o Canadá, levando seu filho Rodrigo na bagagem, foi a conta certa para que a sua vida desandasse. Mulheres, bebidas, gastos além de qualquer limite, fizeram um buraco em suas contas. A jogada das aplicações parecia a solução.
A cabeça de Antonio parecia uma bigorna malhada por um martelo gigante. Cada latejada era como se milhares de agulhas penetrassem em seu cérebro.
Abre a gaveta superior da mesa em busca de um analgésico. Dentro, só encontra o velho três oitão do seu pai. Segura o revólver, sente o peso da arma e imagina para quantas pessoas em sua situação não fora esse
o caminho escolhido para resolver o problema.
Sacudindo a cabeça, como a espantar qualquer idéia estapafúrdia, acaba pousando os olhos sobre o quadro na parede oposta.
Um arrepio percorre a sua coluna. Não era apenas um quadro, era O Quadro!
Durante anos na sua infância aquele quadro fora o responsável por noites e noites de pesadelos.
Uma autêntica hipnose. Quanto mais tentava se afastar do quadro, mais ele tornava-se presente em sua mente de criança.
Era uma imagem perturbadora. Uma visão atormentada de uma alma sem esperança.
Um homem alquebrado, com as roupas em frangalhos, aparecia acuado no canto de uma cela escura. A única luz provinha de uma clarabóia gradeada perto do teto, alta demais para proporcionar qualquer visão externa.
Um monte de jornais a servir de cama e um pedaço de cobertor rasgado eram a única decoração.
Envolvendo a figura do homem, como se estivesse prestes a aprisioná-lo, um rodamoinho repleto de facas, objetos de tortura e rostos de pessoas ensangüentadas. Cores muito escuras em contraste com um vermelho gritante. Os traços do pincel pareciam cortar a tela como navalhadas.
Mas, o mais apavorante de tudo era a expressão do homem. O desespero de seus olhos, como se soubesse que por mais que tentasse fugir seria arrastado por aquela força maligna. Não havia possibilidade de fuga, um caminho sem saída.
Jamais entendera porque seu pai teimara com aquele quadro. Não havia nenhum outro no escritório, só ele. Qualquer tentativa familiar para removê-lo era certeza de aflorar a ira de seu velho.
Fora presente de um antigo cliente seu. Uma pessoa que em um momento de desespero e fúria havia assassinado a facadas a sua mulher e a filha.
Incapacidade mental com total ausência de entendimento, fora a alegação do seu pai nos autos do processo. Vitorioso, havia conseguido que o homem fosse internado em um sanatório ao invés de cumprir pena no sistema prisional.
Por uma ou duas vezes seu pai fora visitá-lo no manicômio. Na última vez ganhara o quadro.

- É pra você, doutor. Quando era moleque meu sonho era ser pintor, mas tudo que consegui na vida foi pintar muros e paredes das casas dos meus fregueses.
Agora estou aqui, entre muros e paredes que não posso pintar. Mas sabe o que é pior, doutor? Não é não poder sair, não.
O pior é não conseguir achar a saída para o meu desespero, pra tanta dor e arrependimento. Leve o meu quadro, doutor. Quem sabe um pedaço da minha alma siga junto. Quem sabe ao levar o quadro a minha alma também se liberte.
Uma semana depois meu pai recebeu a notícia que seu cliente havia se matado. Enforcou-se com um cobertor velho preso no cano do chuveiro.

Mas porque ele, Antonio, agora senhor da casa, não dera um sumiço naquele quadro?
Ainda com o revolver de seu pai na mão, aponta a arma para o quadro e simula um tiro.
Voltando aos seus problemas, Antonio sente a pressão em sua cabeça aumentar.
O desespero parece querer tomar conta de seus músculos que se contraem a ponto de provocar câimbras.
Qual era a saída? O que poderia fazer?
Já podia imaginar o seu futuro.
Demissão sumária, processo e prisão. Anos no exercício do direito não lhe valeriam de nada.
Precisaria de um bom criminalista, como seu pai. Sem querer agradece o fato do seu pai não estar vivo.
A vergonha seria imensa. Passar a vida inteira defendendo todas as espécies de criminosos, não o faria
defensor do próprio filho, agora um criminoso.
Com certeza, se o enfarte não o houvesse levado cinco anos atrás nesse mesmo escritório, o fato de ver o filho preso e cumprindo pena, certamente o faria.
Preso, trancafiado em uma cela por pelo menos dez anos. Tudo, do pouco que possuía, indo a leilão.
Nem mesmo a casa de seus pais seria poupada.
E Rodrigo então? Qual seria a reação de seu filho ao ver as fotos e manchetes colocando o seu pai
como um bandido?
Apesar da separação da sua mulher e das brigas dentro de casa, para Rodrigo ele sempre fora um herói.
Quantas vezes não brincaram juntos pela casa, travestidos como os Guardiões da Justiça, sempre em luta contra malfeitores imaginários?
De todas as punições talvez fosse essa a pior de todas. Encarar o seu filho e ver a decepção estampada
no olhar do menino.
Olha o quadro mais uma vez. Por um momento a figura do homem lhe parece familiar.
Sente a sua camisa empapada de suor. Ondas de calafrio percorrem todo o seu corpo.
Toda a sua vida começa a girar em sua volta. Lembranças, imagens esquecidas, angústias e arrependimentos.
As mãos não param de tremer, agitando o copo de uísque e o revolver em movimentos descontrolados.
E a cabeça, então?
A bigorna, o martelo que não para nem ao menos um minuto, num ritmo cada vez mais alucinante.

-Pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá
A dor, a culpa, a vergonha,

- Pá, pá, pá, pá, pá, pá, pá
O quadro, o homem, a angústia

- Pum!



Um comentário:

  1. Celso:
    adorei seu conto, pesar de angustiante!
    Linguagem fluente, que envolve o leitor.
    Virei outras vezes acompanhar seu trabalho
    literário.
    Parabéns!
    abr
    Maurício Mellone

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