quinta-feira, 10 de março de 2011

Gosto Amargo

Celso Pinheiro de Oliveira


Marta abriu a porta do escritório de Luiz Carlos e ganhou a rua.
Sentia a boca amarga. O coração ainda galopava em seu peito como se procurasse desesperadamente uma saída do corpo.
As pessoas na calçada pareciam estar em outra dimensão. Não faziam parte do mesmo espaço que ela ocupava.

Caminhou em direção ao carro sem saber exatamente o que fazer. Seu pensamento não se alinhava com o turbilhão de seus sentimentos. Era como se outra pessoa houvesse saído daquele escritório. Uma pessoa que Marta jamais havia conhecido.
Esforça-se para buscar uma lógica, uma postura equilibrada para justificar a loucura que havia cometido.

Entrara como um furacão sala adentro de Luiz Carlos e, após meia dúzia de palavras trocadas, haviam se amado com uma fúria animalesca, como se o resto do mundo não existisse, um hiato mágico do tempo.

Ainda sentia em seu corpo todos os beijos e carícias recebidas. O perfume de Luiz Carlos continuava em sua pele, como se quisesse perpetuar a memória dos momentos passados. Por mais estranho que isso pudesse parecer, não conseguia achar sentido para tudo que ocorrera. Era como se um imenso vazio tivesse tomado conta do seu corpo e das suas emoções.

Claro, sempre soubera do interesse de Luiz Carlos por ela. Elogios, olhares a distância, gestos de carinho, tudo dentro do protocolo que a sua situação de mulher casada exigia e da própria distância que Marta estabelecia.

Sergio, seu marido, era dono de uma galeria de arte e Luiz Carlos seu mais assíduo cliente. Apesar de todos os gestos e atitudes, Luiz Carlos jamais havia ultrapassado os limites da boa conduta e educação. Era como se o flerte fizesse parte do seu próprio personagem.

Para Marta, aquilo tudo sempre fora uma brincadeira. Momentos que ela intitulava de SPA do ego, daquela sempre agradável sensação de se sentir desejada. Nunca havia dado espaço para qualquer aproximação maior.
Então, porque isso?

Seu amor por Sergio sempre fora absoluto. Uma paixão instantânea, ao primeiro olhar, ao primeiro toque.
Do beijo ao casamento apenas um ano. Dois anos depois chegava a filha Clara, fortalecendo ainda mais a relação e felicidade dos dois.
Mesmo existindo momentos de discussões, de baixas no relacionamento como em qualquer casal, a confiança e o amor por Sergio nunca foram questionados.

Sabia que Sergio a amava da mesma forma e que a relação entre eles era forte o suficiente para afastar qualquer intromissão que colocasse em risco essa união.
Então, o que havia acontecido? O que mudara?

As suas certezas haviam sido destruídas na semana anterior. Perdera o chão e o buraco que se abrira aos seus pés havia carregado as suas mais arraigadas convicções.

Abre a porta do carro, senta-se e joga a bolsa no banco do carona.
Imóvel, tenta de todas as maneiras segurar a lágrima que teimosamente insistia em cair. Desiste da luta e começa a chorar aos soluços.

Fora na quarta feira. O trânsito havia feito com que ela perdesse a hora do dentista e decidisse voltar mais cedo para casa.
Na garagem, como estava com o carro cheio de compras, subiu pelo elevador de serviço.
Já na copa de casa, escutou a voz de Sergio que conversava com alguém na sala.

Sem saber exatamente porque, resolveu não delatar a sua presença e escutar a conversa. Logo percebeu que a voz da pessoa que estava com o seu marido era do Vinícius, seu assistente direto na galeria.

- Olha lá, Vinicius. Amanhã você inventa um compromisso, pega a Aline e a leva até o flat, ok?. A voz de Sergio deixava claro o sentido da ordem.

- Deixa comigo, chefe. Vou deixar a Aline lá, na hora de sempre.

- Tenho um cliente para receber na galeria, mas até umas 16h00min eu já me livrei dele e vou para o flat. E veja se antes de sair da galeria faz uma ceninha, dá as mãos, um abraço na Aline na frente do pessoal. Eles têm que acreditar que vocês estão mesmo namorando. Mas não abusa, certo?

- Que isso, Sergio. Você não confia em mim?

- Cara, eu não confio nem na minha sombra. Você sabe que se a Marta desconfiar de alguma coisa é o fim.

- Não esquenta a cabeça. Se ela não desconfiou de nada nesses seis meses, não vai ser agora, não é?

- Como dizia minha avó, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém! Sergio completou a frase e caiu na gargalhada, acompanhado por seu cúmplice.

Marta, do outro lado da porta, não podia acreditar no que tinha ouvido. As suas pernas pareciam te-la abandonado. Deslizou seu corpo pelos azulejos da parede até ficar de cócoras.

Então, aquela era a função daquela pilantra na galeria? Amante do seu marido!
Desde o primeiro dia de trabalho de Aline na galeria, Marta não havia simpatizado com ela.
Alguma coisa no jeito de falar, de se vestir, de se relacionar com as pessoas, havia acendido a luz vermelha no painel de Marta.
Era como se pressentisse o perigo eminente.
Só relaxara a marcação e vigilância após saber que ela era a nova namorada de Vinícius.

Mas, agora isso? Tudo uma grande encenação para enganá-la?

A raiva tomou conta das suas emoções. A sua vontade era entrar naquela sala e arrancar os olhos daqueles dois. Trazer a dor para aqueles canalhas, na vã tentativa de acalmar o sofrimento do seu espírito.
Num esforço tremendo, busca a porta da cozinha e sai de casa.

- Alô, Jackie?

- Oi, Marta. Tudo bem? Você está com a voz tão estranha?

- Jackie, estou mal... Preciso muito conversar com você. Posso dar um pulo aí?

Jackie - Jaqueline - era a melhor amiga de Marta desde os tempos de colégio. Ao perceber o desespero da amiga, desistiu da ida ao shopping e confirmou a conversa.

- Claro, meu bem. Pode vir sim, estou a sua espera.

Ao entrar no apartamento da amiga, Marta pula em seus braços, sem conseguir controlar o pranto.
Após colocá-la no sofá e trazer um copo de água com açúcar, Jaqueline escuta pacientemente toda a história da amiga.

- Mas como o Sérgio pode fazer isso comigo? Como pode destruir tudo aquilo que construímos? Nosso amor, nossa filha, nossa casa? Então era isso o tempo todo? Mentiras, enganações, traições? Nada era verdadeiro?

- Calma, Marta. Beba mais um pouco de água. Respire fundo ... assim você vai ter um "treco"!

- Como posso me acalmar, se tudo aquilo que eu sempre acreditei não passa de uma tremenda mentira. Será que o amor dele era tão pequeno, a ponto de arriscar tudo em uma relação com uma pivetinha mal saída das fraldas? E mais, será que ela foi a primeira?

- Ora, Marta! Você bem sabe como são os homens, principalmente os que chegam à idade do Sergio. Buscam relacionamentos com meninas mais novas, como se com isso conseguissem parar o tempo, numa tentativa desesperada de permanecerem jovens e poderosos, os garanhões da manada. Não conseguem lidar com o avanço da idade e com as mudanças que isso acaba trazendo.

- O que você quer dizer com isso? Que preciso aceitar isso como fazendo parte integrante de um relacionamento, fingir que nada acontece?
Jackie, por acaso a idade não chega para nós? Também não temos que aceitar as mudanças em nossos corpos e nossos hormônios? Segurar as nossas inseguranças e, principalmente, dar suporte as inseguranças deles? Se buscar relacionamentos com pessoas mais jovens é a terapia masculina contra a crise da idade, por acaso devemos buscar um tratamento igual? Sair à procura de outros homens que nos façam sentir mais jovens?

- Minha amiga, você sabe que não somos feitas do mesmo barro que eles. Não temos a capacidade de viver de subterfúgios e mentiras, pelo menos as mais conscientes. Mas conheço muitas mulheres que agem da mesma forma que os homens. Algumas para dar o troco, outras porque acabaram transformando o seu casamento em um acordo de interesses comuns. Eu particularmente acho isso uma grande bobagem. O risco de sair de um relacionamento desses mais machucada do que entrou é sempre muito grande.

- A minha vontade é fazê-lo passar pelo o que estou passando. Quero que ele sinta a mesma dor que eu estou sentindo.

- Minha querida, eu sou a pessoa que mais te conhece no mundo. Pense bem antes de tomar qualquer decisão. Cabeça quente nunca é boa conselheira. Procure se acalmar e pesar todas as suas atitudes futuras. A vingança pode trazer muito mais prejuízo para você do que para ele.

Duas semanas se passaram da conversa com Jaqueline, período em que Marta mal trocara duas palavras com Sergio. Parecia que quanto mais evitava seu marido, mais Sergio a procurava, cercando-a de mimos e atenções. A noite, na cama, a distância que Marta colocava entre os dois era abissal. Questionada sobre o que estava acontecendo, dores de cabeça ou alguma indisposição era a resposta. Marta sabia que se entrasse em discussão a colisão seria inevitável. Precisava se guardar, precisava de tempo para tomar uma decisão correta. Mais que toda uma relação em jogo, havia Clara, uma filha que adorava o pai. Uma pessoinha inocente e que certamente seria a maior prejudicada em toda essa história.

Mas, as coisas acabaram se precipitando naquela noite, quando Sergio informou que, no dia seguinte, chegaria um pouco mais tarde para o jantar. Receberia na galeria, no fim da tarde, um cliente de fora e talvez esticasse para um happy hour.

Sem nenhuma manifestação, Marta continuou passivamente a leitura do seu livro, enquanto os pensamentos e as emoções varriam seu cérebro como um tsunami.

No dia seguinte, perto das 17h00min, de um telefone público e com a voz disfarçada, liga para a galeria.

- Galeria D'Arte, boa tarde!

- Ah, boa tarde. Por favor, eu queria falar com a Aline. É a Bruna, uma amiga dela.

_ A Aline não está, teve um compromisso e saiu mais cedo. Gostaria de deixar algum recado?

- Não, eu falo com ela amanhã, obrigado.

A confirmação das suas suspeitas atravessa o peito de Marta como uma adaga. Aguarda uns momentos para se acalmar e retorna para casa. A expressão de seu rosto denotava que a decisão estava tomada.

A buzina de um motorista impaciente traz Marta de volta a realidade. A noite chegara e ela nem se dera conta.

Já estava atrasada para buscar Clara na escola e precisava se recompor rapidamente.
Abaixa o espelho do carro para refazer a maquilagem e olha para a imagem refletida. Não se reconhece, era uma outra pessoa. A frase de Jackie parecia ecoar em seus ouvidos "...a vingança pode trazer muito mais prejuízo para você do que para ele!".
Oh, minha amiga! Como você tinha razão.
A sensação que sentia era de ter feito uma grande bobagem. Fizera uso de uma arma que não sabia manejar. O gosto da vingança era por demais amargo. Não havia um sentimento de vitória, pelo contrário, parecia que a atitude que havia tomado a tinha rebaixado a um nível ainda mais baixo que o de Sergio. Sentia-se agredida duplamente. Sergio havia conseguido violentá-la por duas vezes, espírito e corpo.

Dando a partida no carro, segue em busca da filha. O importante agora era a Clara e havia muito que conversar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário