sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A última edição

Celso Pinheiro de Oliveira

Jorge entrou em sua sala sem conseguir disfarçar a contrariedade.
Fechou as persianas das janelas de vidro que davam para a redação, na busca de uma privacidade que certamente não teria.
Sabia que a atenção de todos, naqueles instantes urgentes, estava voltada para aquele espaço de seis metros quadrados, uma ilha de vidro bem no meio do furacão.
Fez a volta na mesa, jogando-se na cadeira, como um saco de roupa suja atirado no tanque.
Com um gesto automático, buscou o maço de cigarros no bolso da camisa, esquecido do vício que havia abandonado três anos atrás.Olhou para o cinzeiro em um canto da mesa, agora um receptáculo de clips das mais variadas cores e tamanhos.
-Meu Deus,que falta me faz esse maldito!Uma tragadinha só...
Às vezes ainda sonhava que estava fumando. Longas baforadas acompanhadas da "loira gelada" e dos petiscos cheios de gordura do bar do Carlão, um boteco de quinta, mas com um público de primeira. Jornalistas, notívagos sem pressa, músicos e meretrizes. Atravessavam a madrugada em discussões de alto teor etílico, que certamente não deixariam a menor lembrança no dia seguinte.
O ramal interno toca.Era o Carlos, o editor de política do jornal.
-E aí, Jorge, alguma novidade? A negociação prossegue? - sua voz deixava claro a aflição que o dominava.
- Lá em cima está uma loucura. A Clarisse, secretária do homem, está toda descabelada, perdida na lista de ligações a fazer e a atenção às necessidades do povo na sala de reunião.
-Você acha que ainda podemos ter esperança? - insistiu Carlos.
Jorge respirou fundo.Os longos anos de amizade e trabalho com Carlos o tornavam transparente ao colega.Sabia que qualquer inflexão, qualquer mudança de tom na sua voz,demonstraria uma desesperança que não faria bem a ninguém naquele momento.
-Camarada, não sei o que te dizer.Do jeito que as coisas estão, qualquer resultado é possível.O Augusto está lá, com quinhentas negociações em andamento;não consegui extrair nenhuma informação nova.
- Sei, entendi....É que o povo aqui na redação está sem rumo.Parece que o desespero está tomando conta de todos.
_Eu imagino, Carlos. Só que não podemos fazer nada para alterar o quadro.Você precisa me ajudar aí com o povo.Tente acalmar os ânimos... na medida do possível .Vamos fechar a edição e enviá-la para a gráfica.Não acredito que tenhamos alguma solução hoje.
-Vou tentar... vou tentar,eu mesmo não estou me segurando.Mas vamos lá.Acho que mais uns cinquenta minutos e estará tudo pronto para enviar à gráfica.
Por um cantinho da persiana abaixada, Jorge pode ver Carlos desligando o telefone, cercado por seus colegas que estavam ouvindo a conversa.
A sensação de impotência era terrível. A situação toda havia chegado em um ponto sem volta.Sem a chegada de um novo investidor,o jornal fecharia as portas no dia seguinte. Augusto tinha que encontrar a solução.
Augusto Ferreira, o presidente do jornal, havia herdado a Folha Liberal de seu pai,Antonio Machado Ferreira, um senador da República, que passava a maior parte do seu tempo nos afazeres e negociações de Brasília, deixando para o filho o dia a dia do jornal
Augusto conseguiu transformar a Folha Liberal em um veículo de prestígio. Políticos e empresários disputavam a primazia de "aparecer" em suas páginas, sempre muito lidas. Os cadernos de Nacional, Cidade e Esportes eram referência para qualquer leitor que quisesse se manter atualizado com as notícias.
Mas todo o talento que Augusto tinha na condução do editorial e na conquista de seus seguidores sucumbiu diante da sua tremenda inabilidade no trato das coisas do financeiro e do negócio em si.
Anos seguidos de apostas erradas, investimentos mal sucedidos, concorrência predadora, aumento constantes dos custos,dívidas impagáveis com os bancos e o fisco, seguidos de uma baixa expressiva das verbas de propaganda, haviam colocado aquele jornal, de mais de cinquenta anos,em sua rota final.
Ou se achava um novo sócio investidor ou estaria sendo rodada a sua última edição.
Para Jorge, como para tantos outros companheiros, mais que a perda do emprego e da chance de reaverem alguma coisa do passivo trabalhista acumulado, o que estariam perdendo é uma parte significativa de suas vidas. O jornal havia se tornado a continuação da família de todos eles.
Quase trinta anos de dedicação e muita luta. Alegrias acumuladas intercaladas por tempos difíceis, para eles, para o jornal e também para o país.
Jorge percorre com os olhos cada canto da sua sala.A sua mesa era o retrato do caos organizacional que sempre o havia acompanhado. Pilhas de recortes de matérias,edições antigas do jornal, revistas para referências, livros, enfim, a anarquia total disputando, com o telefone e o monitor do computador,cada centímetro do espaço.Quantas vezes ele precisava ligar para o seu próprio celular, para poder encontrá-lo enterrado nessa babilônia de papéis.
Seus dois filhos lhe sorriam,emoldurados entre vidros e alumínio, em uma foto tirada no natal passado.A sensação da eternidade, de que tudo tem uma continuação.
E, bem ao lado do porta retrato, colocada dentro de uma carteira de plástico, do tipo usado para guardar carteira de motorista, estava ela - uma embalagem antiga do bombom Sonho de Valsa, com as cores já esmaecidas pelo tempo.
Imediatamente lhe vem a mente aquela sala úmida e sem janelas. No ar, o odor de urina e fezes misturando-se com o cheiro do pavor, do medo. A escuridão trazia consigo os sons de gritos lancinantes e choros desesperados. Era impossível distinguir se vinham do seu companheiro do lado ou de uma outra cela.
Naquele lugar a noção do tempo não existia. Segunda ou terça, de manhã ou de noite, tudo era uma imensa interrogação.O ser humano reduzido a sua mais primitiva forma. A vida ou a morte,faces da mesma moeda.
O barulho da tranca da porta sendo aberta, imediatamente coloca todos de sobreaviso. A angústia e a sensação de desespero silenciosamente toma conta de todos. Quem seria o próximo a ser levado?
Instintivamente cada um procurou se arrastar para um canto mais distante daquela porta, em uma tentativa inútil de buscar a fuga do inevitável.
A luz vinda do corredor, pela abertura da porta, cega momentâneamente os olhos, habituados apenas com a escuridão.
- Olha aí, pessoal, consegui arrumar dois bombons para vocês. Comam logo e sumam com o papel da embalagem. Se o sargento souber que eu trouxe isso pra vocês vou ficar mal arranjado...
Não era possível reconhecer aquela voz, mas havia algo de amável, de humano, nela, uma contradição a tudo por que estavam passando naquele pedaço de inferno.
Os bombons foram jogados no chão e a porta foi fechada rapidamente.
O silêncio era absoluto. Todos pareciam congelados, imobilizados pelo inusitado do ocorrido.
Lentamente alguns movimentos são percebidos. Mãos a tatear o chão da cela em busca dos bombons.
-Achei, estão comigo. O que vamos fazer, dividi-los?.
A pergunta de Gustavo, mais do que uma intenção, trazia a dúvida que estava presente na cabeça de todos.
Porque havíamos ganhado aqueles bombons? Estariam envenenados, ou com alguma droga experimental? Morreríamos ou sairíamos a "cantar" tudo o que os nossos algozes tentavam descobrir?
As emoções giravam como um caleidoscópio enfurecido. Que país era esse, onde os jovens eram atirados em porões fétidos para serem torturados e assassinados, sem nenhuma defesa possível, só por pensarem de uma maneira diferente dos que estavam no poder? Por ambicionarem um país com mais liberdade e democracia?
Uma tortura tamanha, que até um simples bombom poderia ser confundido com uma arma letal.
- Ok, vamos fazer o seguinte. Eu dou a primeira mordida. Esperamos um pouco, se nada acontecer continuamos a divisão.Cada um dá uma mordida pequena e passa para o companheiro que estiver à direita. Gustavo dá a primeira mordida e passa o bombom para o próximo.
Após algum tempo, como nada aconteceu, a divisão é retomada.
Jorge pensa que, ao chegar a sua vez, quase nada sobrará do bombom.Abriu bem o papel da embalagem procurando lamber cada grãozinho que havia restado.A intenção não era combater a fome. Era a ligação com o mundo lá fora. Cada pedacinho daquele doce o levava mais perto da vida, da fé e da vontade de sobreviver, de voltar.Uma ponte entre o desespero e a esperança.
Alisou o papel sobre a coxa. Esticou cada canto, para depois dobrá-lo milimétricamente, guardando-o em uma parte desfeita da barra da calça.
Jorge sabia que iria conseguir. O Sonho de Valsa seria a sua testemunha desse pesadelo interminável.
A entrada de Carlos na sala o trás de volta de suas lembranças.
-Chefe, missão cumprida!Já enviamos tudo para a gráfica.Notícias do pessoal lá de cima?.
-Não, nada.
- Eu, o Tonho, o Lucas e o Adalberto vamos fazer um "vigília cívica" lá no bar do Carlão. Você não quer ir com a gente?
- Não, camarada. Vou ficar mais um pouco para soltar uns emails e depois vou pra casa. Estou com uma tremenda dor de cabeça.
- Ok, mas qualquer novidade você avisa pra gente, certo?
- Fique tranquilo.Qualquer coisa aviso vocês.- falou Jorge - tentando passar uma certa confiança em sua frase.
Carlos balança a cabeça e se retira, com uma expressão de quem não acreditava muito no otimismo do amigo.
Novamente sozinho, Jorge dá uma lida rápida nos últimos emails que havia recebido e resolve ligar mais uma vez para a presidência do jornal.
Ninguém atende no telefone da Clarissa, nem nos ramais próximos. Jorge sabia que Clarissa jamais iria embora antes do Augusto, o que significava que a reunião já havia acabado e provavelmente todos haviam se retirado. Mais uma noite de espera e angústia.
Jorge abre a porta de sua sala e sai na redação, agora completamente vazia e quase na penumbra. As luzes das telas de proteção de alguns monitores davam um contorno azulado às mesas e cadeiras.
Nunca a sensação de solidão daquela redação foi tão aguda. Jorge sabia que agora só adiantava esperar. A solução seria encontrada.Hay que tener fe!
Já se encaminhava para o hall dos elevadores, quando lembra de ter esquecido algo. Volta para a sua sala e apanha em cima da mesa a embalagem preservada do Sonho de Valsa.
Colocando-a no bolso de seu paletó, dá um pequeno tapinha, como se estivesse cumprimentando um amigo.Sente a esperança voltar. Afinal,como dizem, é sempre mais escuro antes do amanhecer.Amanhã... bem, amanhã é um outro dia.

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