domingo, 8 de agosto de 2010

O anel roubado

Celso Pinheiro de Oliveira

O relógio de cabeceira, com seu display luminoso, marcava uma e trinta da manhã.
Zuleica tateia com as mãos até sentir o corpo do marido ao seu lado. Pelo barulho ensurdecedor de seus roncos certamente já se encontrava no décimo sono.

Vagarosamente afasta as cobertas e procurando não provocar o menor movimento na cama, levanta-se e pé ante pé caminha em direção ao canto do quarto. Antes de pegar a calça que seu marido havia largado sobre a poltrona olha em direção ao esposo, certificando-se, mais uma vez, de seu sono profundo.

Enfia a mão no bolso lateral da calça que, de tão embolada que estava, oferece resistência às tentativas da busca. Finalmente encontra o que procurava. Tinha muita sorte do marido não gostar de usar carteira. Dizia que incomodava e só servia para chamar a atenção dos punguistas. Preferia o bom e velho prendedor de notas.

Com a experiência de anos de atuação, mesmo no escuro, Zuleica vai direto ao miolo das cédulas, em busca das notas de maior valor. Essa era outra mania de Percival. Sempre colocava o dinheiro na ordem crescente de valores. Menores por cima, maiores por baixo.
Separa duas notas. Com sorte seriam duas de cinquenta, isso seria o suficiente.

A consciência sempre pesava naquela hora, mas a esperança de terminar a semana de azar e conseguir recuperar o dinheiro, mesmo sem devolvê-lo ao marido "patrocinador", trazia certo conforto.

Maldito bingo!

Ultimamente os números não estavam ajudando. Sempre que ficava a duas pedrinhas da vitória, em algum canto do salão alguém gritava "Bingo!" e pronto, mais uma cartela perdida.

Na contabilidade de Zuleica, como na de qualquer viciado em jogos de azar, só era computado os resultados positivos. Os cem reais do mês passado, os duzentos e trinta daquele final de ano, os cento e oitenta ganhos às vésperas do carnaval...
Todos os prejuízos dos quatro anos de jogatina ficavam na íntegra no bolso do maridão.

Recoloca a calça na cadeira, esconde no sutiã as notas surrupiadas e volta para a cama, procurando acalmar o coração turbinado pela adrenalina da ação. Emparelha a sua respiração com a sequencia de roncos do marido e vagarosamente abandona o corpo ao sono que chegava.


- É, Dona Zuleica. Acho que essa perna aqui vai precisar de umas picadas. Enquanto falava, Dr. Marcio passava nas pernas de Zuleica um aparelho luminoso que transformava a mais escondida das veiazinhas no mais explícito vaso sanguíneo.

- Vou ter que deixar para depois, Dr. Marcio. Meu marido está em contenção de gastos e já avisou que dinheiro para as injeções das minhas varizes só o mês que vem.

- Ora, Dona Zuleica, a senhora tem crédito. Cuidamos dessas varizes agora e acertamos depois - falou Dr. Marcio com um sorriso nos lábios.

Ele sabia qual era a razão de Zuleica postergar a aplicação das injeções. Com o tempo, acabara por se tornar uma espécie de ouvidor dos seus pacientes mais antigos. Conhecia o vício da Zuleica, sabia que certamente o marido havia lhe dado o dinheiro das aplicações e ela gastara no bingo.

-Ah, doutor, será? Bom, se o senhor acha que é melhor fazer agora, tudo bem. Prometo que acerto tudo depois.


Aquela noite o jantar estava atrasado. A espera pela sorte no bingo havia tomado mais tempo do que o esperado. E o que é pior, ela não veio. Maldito 22, dois patinhos na lagoa, só faltou ele. Era a chance de recuperar o prejuízo do dia, mas o número apontado foi o 37 e aquela senhora, com óculos com lentes "fundo de garrafa", conseguiu enxergar a sorte antes que ela. Gritou bingo e acabou com as esperanças de Zuleica.

- Não faz mal, amanhã será o meu dia - pensa Zuleica, enquanto abria a massa para a torta de frango, prometida para o jantar do marido.

Ajeitando a massa dentro da forma, Zuleica sente um arrepio percorrer a sua espinha. Olha para as suas mãos e em desespero constata que o seu mais precioso anel havia sumido. Não que tivesse muitos, só dois. A aliança de casamento e ele. O anel de brilhantes que seu marido havia lhe dado ao completarem trinta anos de casado. Uma jóia caríssima, como Percival estava sempre reafirmando.

Revira todas as panelas, travessas e potes da pia e da bancada da cozinha. Cutuca o ralo, passa o pente fino no lixo, cutuca cada cantinho em baixo dos móveis. Nada!

Começa a revisar cada lugar que passou durante o dia. O supermercado de manhã, doutor Marcio após o almoço, o bingo. Com certeza em algum lugar havia caido, pensa ela. O último regime espartano a que havia se submetido, apesar de não livrá-la completamente dos terríveis pneuzinhos da sua cintura, havia afinado um pouco seus dedos, deixando uma pequena folga no anel.

-Porque não levei o bendito anel para apertar! Ela sabia que o marido, como grande observador que era, iria dar pela falta do anel. Tinha que encontrar alguma maneira de disfarçar, pelo menos até o dia seguinte, quando iniciaria a peregrinação pelos locais em que estivera, na tentativa de encontrar alguma pista.

- Essa torta de frango está uma delícia! Percival não conteve a exclamação ao experimentar o primeiro bocado. Coisa dos deuses! Ato contínuo busca as mãos de Zuleica.

-Beijo as mãos dessa verdadeira artista da cozinha! Mas... O que aconteceu? Cadê o seu anel?

-Pois é, amor. Hoje resolvi pegar a Zefá de jeito e fizemos uma super faxina na casa, até o encardido da banheira saiu. Quando terminamos notei que o meu anel havia sumido. Ele estava um pouco largo e deve ter caído em algum canto na hora da limpeza.

- Mas não se preocupe. Amanhã com a luz do dia vamos encontrá-lo, até já amarrei São Longuinho no pé da cadeira para nos ajudar.

-São Longuinho?? As crendices da sua esposa eram no mínimo pueris. Ele não conseguia aceitar que, amarrando um toco de madeira ao pé de uma cadeira, chamá-lo de São Longuinho e só libertá-lo após o pedido ser atendido, pudesse alcançar algum sucesso.

- Espero que ele realmente te ajude. Você sabe como custou caro aquele anel.

-Não se preocupe Percival. Amanhã o anel estará em meu dedo. Agora, continue comendo sua torta que ela está esfriando....


No banheiro da sua suíte, Zuleica retirava a maquilagem, comemorando o relativo sucesso da sua desculpa.

-Ufa, por hoje eu escapei! Amanhã tenho que achar esse anel de qualquer maneira.

O marido, que se preparava para deitar, grita do quarto.

-Amor, tenho que reconhecer que a sua fé é grande!

-O que?

- Seu amigo, São Longuinho...Ele é poderoso mesmo, só acho que você não devia soltá-lo.

-Você está ficando louco, Percival? Zuleica volta ao quarto encontrando o marido de pé, com as calças na mão, segurando algo entre seus dedos.

- Olha só o que achei.

-Como? Meu anel! Você encontrou o meu anel? Estava no chão? Embaixo da cama? Onde estava?

- Não, nada disso. Ele estava no bolso da minha calça, aquele bolso que eu coloco o meu dinheiro.

-No bolso da sua calça? Como assim? Como ele foi parar lá?

-Como foi não faço a menor idéia. Só sei que o seu querido São Longuinho está ficando muito mercenário.

-Mercenário??

- É...Devolver ele devolveu, mas me cobrou cem reais pelo serviço!

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