domingo, 8 de agosto de 2010

A presença

Celso Pinheiro de Oliveira


O silêncio da sala de estar em que Abel lia o seu romance preferido é bruscamente quebrado pela entrada de seu neto, Pedro, que em desabalada carreira, desviando perigosamente da quina da mesa de centro, corre gritando ao seu encontro.

-Vovô, vovô! Olha o que eu e a vovó achamos no quartinho da bagunça!

"Quartinho da bagunça" era o depósito que o apartamento possui na garagem do prédio, onde se guardava tudo aquilo que não tinha mais utilidade, mas não se encontrava a coragem de jogar fora. Abel preferia chamá-lo de quarto das recordações.

Nas mãos de Pedro, um irrequieto menino de sete anos, um objeto de plástico, no formato de uma pequena pia enquadrada num mural, que tinha ao topo uma imagem de Nossa Senhora.

Passando as mãos nos cabelos encaracolados do menino, Abel puxa a criança para o seu colo e com um beijo nas bochechas rosadas começa a explicação.

-Isso é uma piazinha de água benta. Quando o vovô a ganhou tinha quase a sua idade. Está vendo esse furinho no alto, serve para pendurá-la na parede ao lado da cama.

-Água benta? O que é água benta? É da vovó Benta do Sítio da Emília?

Abel sorri e se dá conta que para o seu neto conhecer a história do Sítio do Pica Pau Amarelo já havia sido uma vitória. Esperar que ele tivesse noções dos chamados ritos da igreja católica, já tão em desuso, seria uma coisa impossível.

-Água benta, meu filho, é uma água abençoada pelo padre na igreja e que antigamente usávamos, após as orações da noite, para passar na testa fazendo o sinal da cruz. Enquanto falava, Abel fazia com os dedos o sinal na testa do menino.

-E pra que servia isso, vô?

-Era para proteger, para que todos os seus sonhos fossem sempre bonitos - diz Abel procurando simplificar as explicações.

-Sabe, vô. Eu às vezes tenho uns sonhos feios....fico com muito medo, até cubro a cabeça com o travesseiro.

-Será que se eu pedir pra vovó ela pede pro padre um pouco dessa água pra mim?

-Claro que sim, vai lá pedir para ela. Depois o vovô vai a sua casa e coloca a piazinha do lado da sua cama, tá bom?

Abel nem bem terminara a frase e o menino já corria a procura da avó.

Com o silêncio de volta a sala, Abel tem seus pensamentos voltados para o passado. A idade era a mesma do seu neto, só que as mãos que seguravam o relicário eram outras. Não branquinhas como as do menino, mas negras como a noite.

Cata, a querida tia Catarina, um anjo negro colocado na terra para ajudar e proteger as vidas de todas as pessoas que tinham o privilégio de conviver com a sua bondade.

Uma alma sem volta, que já havia alcançado o último degrau da espiritualidade. Um ser feito de puro amor e compaixão, sem espaço para qualquer maldade ou fraqueza humana.
Nascida para a mais nobre de todas as missões, servir a todos que a cercavam.

Ah, e os seus doces de leite! O presente mais aguardado por Abel em seus aniversários. Aquela lata usada de biscoitos São Luiz, recheada com pedacinhos de doce de leite, era um tesouro magnífico que Abel sempre corria a esconder do alcance de seus irmãos.

De quando em vez, Cata juntava uns trocados que recebia de seus irmãos e pedia para ele acompanhá-la ao cinema. Mãos dadas, lá iam os dois para assistirem a mais nova comédia de Jerry Lewis. Riam até o estômago doer, vivendo um instante mágico em que a diferença das idades deixava de existir.

Com a janela das suas lembranças escancarada Abel começa a viajar por todas as pequenas histórias que compunham o painel da sua vida. A presença da Cata era uma constante. Da adolescência de Abel até o nascimento da sua primeira filha, ela sempre estivera presente, de forma velada, como a presenciar a distância o crescimento da terceira geração aos seus cuidados.

Pouco tempo depois da morte da mulher, a quem a vida toda chamou de mãe, Cata também fez a sua passagem. Um pedaço do passado de Abel pareceu ficar solto, como um barco a deriva.

Mas o que parecia ser uma perda irreparável acabou tornando-se a grande proteção da sua vida.

Sim, do outro lado da vida, Cata continuava seu trabalho de protegê-lo em cada instante de dificuldade, em cada momento de angústia. Abel podia senti-la ao seu lado, dando o conforto e a força necessária a cada superação imposta pelo seu destino.

Um arrepio percorre o corpo de Abel e uma súbita vontade de chorar o acompanha. Era o sinal. Mesmo sem conseguir vê-la ele sabia que ela estava ali, bem ao seu lado.

-É, minha preta...O que seria de mim sem a sua força, sem o seu auxílio. Viu só o Pedrinho? Ele encontrou a sua piazinha de água benta e saiu todo contente em busca da avó. Esse menino é muito amoroso, com o coração do tamanho do mundo. Tenho certeza que com a sua proteção vai se tornar um grande homem.

- Ora, veja. Lá estou eu de novo a fazer os meus pedidos, sempre precisando do seu amparo. Você acha que é muito egoísmo da minha parte?

A lembrança daquele sorriso enorme, lua cheia em noite escura de verão, traz a resposta que dispensava palavras, a certeza de um sentimento eterno de proteção e amor.

Abel, com uma lágrima teimosa de canto de olho, envia feliz um beijo para o infinito.

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