terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Sobre borboletas

Celso Pinheiro de Oliveira


O vento tocava levemente seu rosto fazendo com que seus cabelos dançassem sobre os olhos, em uma brincadeira de esconde- aparece.
Dalí, da altura em que ela estava, era possível enxergar o verde do Parque do Ibirapuera, contrastando com o imenso mar cinza dos prédios da cidade.
Nuvens escuras se formavam no horizonte, prenunciando mais um dia de muita chuva em São Paulo. A cidade, tomada de asfalto e cimento, havia se tornado impermeável e agora, dia a dia, a natureza cobrava a conta do desmazelo.
Àquela hora da manhã, lá embaixo na rua, as garagens dos prédios já começavam a despejar os carros e seus moradores, que partiam para mais um dia de trabalho.

- Os prédios parecem enormes gigantes que de ponta cabeça, escancaram suas bocas vomitando pessoas e carros - O pensamento arrancou um sorriso de Maria.
As pontas dos dedos dos seus pés flutuam livres fora da beirada da janela. O esmalte vermelho das unhas fazia com que parecessem pequenas borboletas voando sobre a rua.
-Que bom se eu fosse uma borboleta!

Maria sempre tivera fixação por borboletas. Elas estavam presentes em todas as suas coisas. Nos pingentes de seu quarto de criança, nas presilhas de cabelo, no estojo de lápis de cor. Não iniciava um caderno novo na escola sem antes desenhar, na primeira página, uma borboleta colorida.
E a Leninha ? Uma enorme borboleta de pelúcia que havia ganho do seu pai quando tinha oito anos. Fora sua primeira amiga e confidente. Isso sem contar é claro, com o Pedrinho, seu grande amigo, cujo único defeito era ser invisível para todos, menos para ela.
Os dois foram testemunhas do seu sofrimento, a cada briga de seus pais. Estavam sempre presentes quando ela corria a se esconder em baixo da cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro, para não escutar os gritos e discussões.
E fora em baixo da cama que o seu pai a encontrou, quando veio se despedir antes de sair de casa.

- Mázinha sai um pouco daí que o papai precisa conversar com você - Seu pai ajudou-a a sair de seu esconderijo, sentando-se ao seu lado na cama.
- Não chore minha pequena. Os adultos são assim...ás vezes discutem e brigam.
O papai queria dizer que ama muito você, que você é a borboletinha dourada do papai. Enquanto falava, fazia um cafuné na testa e nariz da pequena, algo que sempre acalmava a menina.
- O papai não quer mais brigar com a mamãe, nem que a borboletinha dele sofra. Por isso nos achamos, a mamãe e eu, que é melhor o papai ir morar em outro lugar.
- Como assim? E eu? Vou junto com você? -
- Não, é melhor você ficar com a mamãe, assim ela não fica sozinha e triste. Mas o papai vai vir todo dia visitar você, tá bom meu bem?

Promessa que ele não conseguiu cumprir. As suas visitas eram sempre terminadas com novas brigas com a sua mãe, que mesmo nas suas ausências - talvez até por uma questão de costume, fazia questão de lembrar a menina, o quanto ele era irresponsável e omisso.

Um dia sua mãe pediu que se vestisse para irem visitar o pai. A menina estranhou o convite, mas "mergulhou" em seu armário em busca da roupa mais bonita. Qual vestido usar? O verde ? O vermelho de alcinhas, ou o azul de lacinhos brancos? Seu pai sempre dizia que com o azul ela parecia uma princesa.
- Maria das Graças se apresse! Não temos o dia todo! A menina sabia que quando a sua mãe lhe chamava pelo nome inteiro era sinal de problema. De um só pulo, vestiu o vestido azul de lacinhos e desceu.

- Mamãe...não estou entendendo. Não íamos visitar o papai? Então porque estamos entrando no hospital?
- E que o papai ficou doente e teve que vir para o hospital - A resposta seca de sua mãe encerrava a questão, não deixando espaço para nenhuma outra pergunta. Desde a separação sua mãe parecia haver perdido o seu eixo. Tornara-se uma pessoa amarga, distante, sempre reclamando, como se o mundo estivesse em débito com ela.

Ao entrarem no quarto, a menina foi surpreendida por uma parafernália de equipamentos. Ao lado de seu pai um aparelhinho, que mais parecia uma televisão, cheio de números, com uma bolinha e riscos esverdeados que se movimentavam por toda a tela. Dois canudinhos saiam das suas narinas e eram ligados a um tubo na cabeceira de sua cama.
Ao perceber a sua presença seu pai abriu vagarosamente os olhos, e ao vê-la, fala com uma voz muito fraca e cansada.
- Oi minha gatinha, é você? Chega mais perto para o papai te ver direito. Olha só! Você veio com o vestido que eu gosto, parece uma princesinha...
Maria não consegue falar. Sente uma lágrima teimosa escorregar pelo seu rosto.
- Não precisa chorar minha princesa. O papai está bem, daqui a pouco vou voltar pra casa e você vai me visitar, está bem?
Com muito esforço ele conseguiu colocar a mão no rosto da menina, fazendo o cafuné em sua testa.
- Não fique triste minha borboletinha dourada..
Um acesso de tosse interrompe a frase. Imediatamente a enfermeira, que estava no quarto, pede que todos saiam.
Foi a última vez que Maria veria seu pai.

-Porque dessa lembrança agora? - boca seca e o coração aos pulos, Maria começa a ver passar o filme da sua vida.

A perda de seu pai fizera dela uma menina ainda mais introspectiva. Já no ginásio, o relacionamento com os colegas de classe eram sempre superficiais e distantes. Parecia que Maria evitava uma aproximação maior, com medo do envolvimento que pudesse acontecer. Até mesmo os namoros, tão comuns para a sua idade, eram passageiros. A única pessoa que havia conseguido conquistar o seu afeto era o Carlos. Ele sim estava junto em todas as ocasiões, escutando seus segredos e aflições. Talvez até pelo fato dele também ser uma espécie de alma desgarrada. A maioria dos rapazes o considerava afeminado, evitando a qualquer custo serem vistos em sua companhia.

- Sabe Cá, o Marcos quer ficar comigo! Maria conversava com Carlos nos degraus da arquibancada da quadra de esportes do colégio.
- Ué menina! Mas vocês já não estão ficando?
- Você não entendeu...Ele quer ficar, quer tudo entendeu?
- Uauuu! E aí? O que você respondeu? Você falou que ainda era virgem?
- Claro que não! Você acha que isso é coisa prá se dizer! Maria dá um tapinha no braço do amigo fingindo estar com raiva.
- E eu que sei?...Mas você gosta um pouco dele não?
- Ele é um cara legal...é divertido. Sei lá... quer saber a verdade? Eu queria experimentar...quem sabe depois disso, as outras meninas parem de me perturbar.
- Esquece essas meninas, pense em você. Pense se isso vai fazer bem a você... se vai te fazer feliz.
- Não sei meu amigo, acho que só experimentando, né? Se acontecer eu te conto, ok? Maria ouve Carlos chamando por ela, na rampa de saída da escola. Despede-se do amigo.
- Segunda feira a gente conversa, beijo!

Maria se arrumava em seu quarto para ir ao shopping, quando ouve o grito de sua mãe.
- Maria, o Carlos está aqui!
- Pede para ele subir, mãe!
-Carlos no domingo à tarde em casa? O que será que aconteceu? - pensa Maria estranhando a visita.
Carlos abre a porta do quarto de Maria, entrando esbaforido, mal contendo a ansiedade.
- Desculpa Má, mas eu não aguentei esperar até amanhã. Quero que você me conte tudo. Rolou? - sentado na cama de Maria, Carlos abraça a borboleta de pelúcia colorida, que estava sobre o travesseiro.
- Cara pode soltar a Leninha! Você sabe que nela ninguém pode tocar! -retira a borboleta das mãos de Carlos, deixando claro o seu descontentamento.
- Esqueci... desculpa. Não encosto mais nela! Agora me fala, rolou?
- Rolou...- Maria senta-se na poltrona, encolhendo suas pernas contra o peito para abraçar a borboleta.
- Então..fala. Aonde vocês foram?
- Fomos à casa de um primo do Carlos, o Valdir. Os pais dele estavam viajando e ele emprestou a casa para o Carlos.
- Detalhes Má....quero todos os detalhes.
- Sabe, pra falar a verdade foi tudo muito rápido. Mal chegamos e o Carlos me levou para o quarto. Na cama trocamos uns dois ou três beijos e ele começou a me arrancar a roupa...
- E.....
- Para ser sincera, a coisa toda se resumiu em dor.
- Como assim?
-Quando ele tirou toda a roupa, deitou em cima de mim e começou a me penetrar. Doía muito e eu não sabia como deveria agir. Ele parecia nervoso e eu não queria que se irritasse comigo. Depois eu acho que fui me acostumando, quase gostando sabe? Só que aí, ele começou a tremer e um segundo depois já estava deitado ao meu lado.
- E foi só isso?
- Só...Depois, como ele me disse que estava com medo dos pais do Valter voltarem, pussemos nossas roupas e ele me trouxe para casa. Sabe Cá, não dá pra entender porque as meninas falam tanto em transar. Eu pensei que fosse muito melhor, com muito mais carinho, um instante mágico...Acho que estou me sentindo pior que antes.

As mãos de Maria, na moldura da janela, começam a formigar. Contraindo e descontraindo, ela faz o sangue voltar.

- Alô?
- Ei Má, sou eu, pode falar?
- Posso...mas rápido..o Julian deu uma saidinha mas já deve estar voltando!
- Ichiii, você e esse Julian..Vamos nos encontrar hoje à noite? Conheci uma pessoa muito especial e queria falar com você. Vamos?
- Cá, hoje não vai dar. O Julian ficou de me levar naquele restaurante novo.. Vamos amanhã, ok?
- Tudo bem - responde Carlos com a voz conformada. Contra o Julian eu perco todas mesmo!
- Deixa de ser ciumento! Você sabe o quanto é especial para mim!
- Ok Má, tudo bem. Amanhã a gente conversa. Beijinho!
- Outro....

Maria desliga o telefone, ainda sorrindo com o ciúme de Carlos. Ele era o irmãozinho que a vida lhe dera. Sempre presente, apoiando, protegendo, principalmente nesse último ano, após a morte de sua mãe.

Julian retorna a sala. Maria não podia deixar de notar o quanto ele era bonito.
Alto, cabelos grisalhos e um par de olhos azuis que deixavam corações arrasados na sua passagem. Seu porte atlético não deixava transparecer os seus quase sessenta anos de idade. Viera dos Estados Unidos, enviado pela matriz da companhia, para assumir a vice presidência de marketing.
Apesar de ser o chefe imediato de Maria, ela levou um bom tempo para se interessar por ele. Talvez a sua educação, o fato de ser muito atencioso, o seu jeito de falar e encarar a vida, a sua experiência. O encantamento chegou, fazendo com que ela colocasse de lado todas as suas defesas. Até a diferença de idade, quase trinta anos, deixou de contar para Maria. A relação já durava cinco anos. Cada um em sua casa, mas sempre juntos como um verdadeiro casal.

A conversa com Carlos na noite seguinte acabou altas horas da madrugada. Como fazia já algum tempo que não se viam, a fila de assuntos era enorme. Mas o que Carlos queria mesmo falar era sobre Raul. Carlos conhecera Raul há uns três meses e a paixão fora imediata. Em apenas uma semana, Carlos devolveu seu apartamento alugado e fora morar com ele. Raul era um diretor de teatro - Uma inteligência de físico nuclear em um corpo de atleta olímpico, como dizia Carlos.

- Toma cuidado meu amigo. Você sempre entra nos seus relacionamentos com entrega total. Você está se cuidando? Está se prevenindo?
- Má, agora quem cuida de mim é o Raul- Carlos respondeu com um olhar tão apaixonado, que Maria achou melhor não continuar o interrogatório.

Ao chegar em casa, Maria notou o lead da secretária eletrônica piscando. Pressiona o botão para escutar a mensagem.
- Maria..sou eu, Julian. Tentei falar com você, mas não consegui. Estou saindo para uma viagem de emergência. Volto na segunda feira. Beijos.
-Viagem de última hora? estranhou Maria.

As horas daquele fim de semana teimavam em não passar. Maria era toda angústia, alguma coisa parecia lhe dizer que problemas iriam surgir.
Ao chegar ao escritório na segunda feira, encontrou colado na tela do seu computador, um post it do Julian.
- Cheguei e entrei direto em reunião com a presidência. Almoçamos?

No restaurante, pela expressão de Julian, Maria deve certeza que a conversa não seria amena.

- Meu amor, sinto não ter conseguido te avisar. Fui para os Estados Unidos.
- Estados Unidos? Mas o que aconteceu?
-É uma conversa difícil, preciso que você me escute com muita calma. A companhia tem uma regra que todo diretor, ao completar sessenta anos, tem que se aposentar. E como você bem sabe daqui a dois meses eu faço sessenta.
- E....?
- Para minha surpresa fui convidado pela matriz para fazer parte do conselho internacional. O pessoal de lá acredita que a minha experiência com países como o Brasil, possa ser de grande valia para eles.
- Mas que bom! Isso é um grande reconhecimento ao seu trabalho. E fazendo parte do conselho da companhia, você vai poder agilizar a minha transferência para lá. Assim posso continuar trabalhando.
- Maria...não vai poder ser assim.
- Como não? Porque?
- Maria, estive também com a minha família. Você sempre soube que eu tinha mulher e filhos nos Estados Unidos.
- Sabia...- diz com a voz trêmula. Mas você sempre disse que estavam separados!
- Sim, é verdade. Só que agora com a volta, meus filhos estão fazendo muita pressão e...
- E?
- Bom... Maria, eu sinto muito, mas resolvi reatar com a minha mulher. Nos vamos viver juntos novamente.

A cabeça de Maria parecia entrar dentro do seu pescoço. Não conseguia mais sentir seu próprio peso. Começando a sentir náuseas, reúne as forças que lhe restavam e sai do restaurante, abandonando Julian na mesa. Precisava desesperadamente de ar...

Os meses seguintes a partida de Julian, encontraram uma Maria cada vez mais reclusa.
Sistematicamente recusava convites para as festas e encontros com o pessoal do escritório. Por força dessa atitude os convites foram rareando, passando a não chegar mais. Até o Carlos parecia ter se evaporado,nunca mais ligara.
-Pelo visto, o relacionamento com o Raul devia estar a mil - pensou Maria. - Mas quer saber, se ele não liga, ligo eu!

O telefone tocou muito até que alguém atendesse. Uma voz gutural atende do outro lado. Maria não consegue reconhecer a voz.
- Alô, quem está falando? Carlos é você?
- Sou eu sim, Maria. Sou eu mesmo.
- Carlos... o que está acontecendo? Você não está bem?
- Estou sim Má...É só uma gripe muito forte- a voz de Carlos deixava transparecer o esforço que ele fazia para conversar.
- Não fale mais nada. Estou indo para aí- Maria desligou o telefone, sem esperar a resposta de Carlos.

Ao chegar ao apartamento, Maria encontra a porta entreaberta. Não esperou a permissão, entrando apartamento adentro. A sala estava na mais completa desordem. Provavelmente não via uma faxina há muito tempo. Pelo vão da porta da cozinha, dava para notar, que a situação ali também era caótica. Uma montanha de pratos e panelas buscava um equilíbrio precário, usando a própria torneira da pia como amparo, que gotejava insistentemente, como se quisesse dar conta de toda aquela sujeira.
Um acesso de tosse à leva ao quarto de Carlos, lá encontrando o amigo enrolado em cobertas, apesar de todo o calor que fazia.

- Carlos, o que está acontecendo? Você está queimando de febre!
- Não sei minha amiga. Não estou conseguindo nem abrir os olhos. Perdi a noção de quanto tempo estou aqui.- Com a voz muito baixa, Carlos tentava conter o tremor do corpo.
- Espera um pouco que vou ver se encontro toalha e água para abaixar essa sua febre. Mas onde está o Raul? Como ele te deixa sozinho nesse estado?
- Má, o Raul morreu o mês passado! Tentei te avisar, mas você não retornou nenhum recado meu...
Maria não precisou perguntar mais nada. O estado de Carlos, a morte de Raul, tudo levava a uma conclusão, que apesar de evidente, ela fazia questão de afastar da mente.
- Não se esforce mais. Você precisa ir já para o hospital. Vou te enrolar em um cobertor limpo e te ajudo a descer até o meu carro.

A espera naquela sala do hospital aumentava a angústia de Maria. Os enfermeiros haviam levado Carlos há mais de uma hora, deixando-a ali sem nenhuma informação. Na baia da enfermagem nenhum movimento era visível. Até os ponteiros do relógio, colocado na parede lateral do posto de serviço, pareciam parados.

O telefone toca e uma enfermeira vem avisá-la que o médico estava chamando. Maria é conduzida a uma pequena sala de consultas, sendo recepcionada por um médico de aparência séria e reservada.

- Você é a acompanhante do paciente?
- Sim doutor. Fui eu que o trouxe para cá.
- Você é da família?
- Não doutor. Carlos não possue parentes. Seus pais já morreram há muitos anos. Somos grandes amigos ... na verdade Carlos é quase um irmão. Mas doutor, o que ele tem?
- Fizemos todos os exames e não restou nenhuma dúvida. O paciente está com AIDS. A doença já se encontra em estágio avançado, apresentado os sintomas de uma pneumonia bastante forte.
- O senhor tem certeza? Não pode haver algum engano? Maria sabia da inutilidade da pergunta. A morte de Raul era muito mais que um indício da doença.
- Eu sinto muito...O paciente permanecerá internado até que possamos estabilizá-lo e cuidar da pneumonia. Depois disso terá alta e você poderá levá-lo para casa. Agora o que é muito importante é localizar as pessoas que se relacionaram com ele e encaminhá-las para exames urgentes.

Maria sabia que nos últimos anos, para o seu amigo, só existira o Raul. Fidelidade sempre fora um traço muito marcante de Carlos, na amizade e no amor.
Deixa o hospital em direção ao estacionamento, sem conseguir imaginar aonde havia largado seu carro. Tentava pensar positivamente; que Carlos era forte, que os coquetéis que combatiam a doença estavam cada vez mais poderosos, que ele iria se safar dessa...O coração gritava aquilo que a cabeça parecia não entender. Sentando-se em um pequeno banco do estacionamento, Maria apoia a cabeça por sobre os joelhos, deixando as lágrimas, até então contidas, seguirem seu curso natural.

As duas semanas seguintes foram de muita correria para Maria. Entre o trabalho e as visitas diárias ao hospital, ela cuidava de arrumar um quarto de sua casa para receber o amigo. Decidira que Carlos iria morar com ela, nada adiantando a insistência dele em voltar para a própria casa.

A saída do hospital, a aparência de Carlos já apresentava melhoras. A cor de seu rosto voltara, o que disfarçava ligeiramente as manchas que começavam a surgir em sua pele. Apesar de estar ainda muito fraco, a sensação de estar fora do hospital,
fazia-lhe muito bem.
- Agora vamos para casa. Vamos enfrentar essa luta juntos e juntos vamos vencer essa doença! A frase cheia de esperança de Maria arrancou um sorriso de Carlos, que pega a mão da amiga depositando um beijo de agradecimento.

A luta prosseguiu. Cada pequena melhora na saúde de Carlos era comemorada com muita alegria. Nas recaídas, que eram cada vez mais constantes, Maria procurava sempre acalmá-lo, não deixando nunca transparecer o desespero que a dominava.
Procurava estar o mais presente possível. As noites e os finais de semana eram gastos com os cuidados médicos necessários e longas conversas sobre a vida.
Por mais paradoxal que pudesse parecer, quando mais a doença tomava o corpo, mais a mente de Carlos parecia lúcida. Em muitos momentos era a sua força interior, a sua luz, que acabava trazendo conforto para Maria.

- Sabe Maria, acredito que o sofrimento traga sempre uma lição. É como se ele viesse para nos dizer o que ainda precisamos resgatar em nossas vidas. É a maneira que Deus encontrou para abrir as nossas mentes.
- Cá, me responde com sinceridade, você acredita em Deus?
- Claro que sim. Porque não haveria de acreditar?
- Não sei....Acho que perdi a minha fé. Se Deus existe, ele tem sido muito cruel comigo. Se o sofrimento vem para nos ensinar, o que eu deveria aprender? Porque ele insiste em me tirar tudo aquilo que eu amo? Que grande lição há na perda?
- As perdas, assim como os erros, nos ensinam muito. Não existe nada a aprender com os acertos, eles só são a confirmação do seu conhecimento. O erro, a perda e a dor nos ensinam muito. Nos fortalecem, nos fazem crescer. O próprio nascimento é um ato de dor. É um instante de sofrimento para encontrar a luz.
- Qual o sentido da perda? Porque nos privar das pessoas que amamos?
- Como você mesmo disse...Se Deus toma é porque deu. Qual é a real felicidade - perder algo que nos é importante ou nunca ter tido alguém ou sentimento para perder?
- Sei lá, acho que tudo isso é conformismo demais. Sofrer nessa vida para encontrar uma vida feliz depois...Então talvez seja melhor abandonar essa e ir direto para a outra...
- Isso seria como tentar passar de ano na escola na metade do semestre. Você só evolui quando aprendeu tudo que aquele estágio pode oferecer. Abandonar no meio só faz com que tenhamos que voltar ao começo. Olhe para mim, você não acha que seria muito mais fácil eu desistir...
Maria segura a mão de seu amigo e acaricia os poucos fios de cabelo que lhe restavam.
- Desculpa Cá. Não percebi o quanto estava sendo insensível. Meus problemas são tão pequenos diante do.....- Maria interrompe a frase repentinamente.
- Diante do meu, você queria dizer.
- Desculpe-me de novo Cá. Eu estou um pouco estressada. Às vezes parece que todas as portas estão se fechando, a gente fica sem caminho, perde o chão. A cabeça começa a "pirar"!
- A sanidade mental, minha amiga, é como aquelas cortinas de plástico antigas que colocavamos no box do chuveiro. Quando estamos saudáveis todos os ganchos permanecem presos a barra. Os traumas que a gente vai acumulando vão soltando esses ganchos. Cada gancho que escapa vai deixando mais peso para os que ficam, até que o último, não suportando o peso, cai levando junto a cortina.
- Eu acho que então estou pelo último gancho..
- Mas o que é isso Má? Você precisa reagir, você é ainda uma criança!
- Criança...bem que gostaria. Eu e meu mundo...
- Má, as vezes, quando a dor é muito grande, eu sinto vontade de abandonar tudo, de simplesmente fechar os olhos e deixar o corpo ir. Certos dias até sonho com isso.
Quando acordo e vejo que ainda estou aqui, preso a esse sofrimento, sinto muita raiva. Aí vou me acalmando. Tomo consciência que se ainda não fui e porque não acabou. A vida ainda não me deu alta....
- Meu amigo, gostaria de ter essa sua força, essa fé.
- Acho que nem eu mesmo sabia que tinha. A fé muitas vezes é um aprendizado, um copo de água completado dia a dia, gota a gota.
- Está certo meu querido. Vou tentar encontrar o meu copo. Agora vamos dormir, que você precisa descansar.- Maria arruma o cobertor de Carlos e estala um beijo em sua testa.- Durma com Deus!

Na manhã seguinte, Carlos fez a sua passagem. Maria o encontrou deitado, na mesma posição da noite anterior. Pela primeira vez, em todos esses meses de dor, Carlos mostrava um rosto sereno, quase feliz. Era como se ele estivesse a lhe dizer que havia cumprido a sua missão. Maria chorando toma o corpo do amigo nos braços, como se com isso fosse possível mante-lo ali, ao seu lado. - Não meu Deus, outra vez não!
Porque insiste em me tomar tudo? Que mais eu posso lhe dar?

-Que mais eu podia dar, se nada mais eu tinha a perder? - O pensamento e os primeiros pingos da chuva que chegava, trouxeram de volta Maria. A impaciência dos motoristas, já era traduzida pelas primeiras buzinas vindas da rua abaixo. O vento frio arrepiava a sua pele. A chuva começa a desenhar caminhos pelos seus braços encostados na moldura da janela da sala.

- O que mais deveria ser aprendido? O que ainda estava faltando? Carlos, paizinho...
me respondam...

Parecia que todos estavam ali. Carlos, a sua mãe, Julian sentado em uma cadeira cercado da mulher e dos filhos... E o Pedrinho, onde estava? - Fazia muitos anos que ela não via o Pedrinho. Não conseguia se lembrar da última vez que ele aparecera. - Talvez ele tivesse ficado com ciúme da sua amizade com o Carlos...Será? E ali, bem no meio de todos eles, seu pai. Todos a olhavam com uma expressão estranha, Maria não conseguia entender. Não estavam felizes em vê-la?
- Pai porque você está com essa cara? Não está feliz em me ver? Sou eu pai....a sua borboletinha dourada. Maria estende seus braços como se fosse abraçá-lo.

- Olha pai...agora eu sou mesmo uma borboleta. Está vendo pai?
Agora eu também posso voar.....

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