quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A caminho do transplante

Patrícia Diguê


Ela cruzou a minha vida a muitos pés de altura, em algum ponto do céu entre Brasília e São Paulo. Havia saído às 4 da madrugada de casa naquela terça-feira. Lá de um lugar chamado Picos, a cinco horas de Terezina, o aeroporto mais próximo. Era um dia importante. Após a conexão em Brasília, onde eu embarquei, o destino era um hospital de São Paulo. Lá, o filho de 11 anos, portador de Hepatite C, se submeteria a uma cirurgia de transplante de fígado, após longos cinco anos de espera. A doadora era ela mesma, a mãe. Em um voo de gente importante, bem vestida e perfumada, ela se destacava: de brincos prateados um pouco descascados, cabelos presos no alto com um presilha de plástico, sandálias baixas também de plástico, calça legging branca, bolsa também branca e uma espécie de blazer azul. “Faz frio lá?”, perguntou-me. “Em Picos, é calor, sem ventilador não dá pra dormir”.

Apesar da figura destoante dentro do avião, foi tratada com uma naturalidade politicamente correta que beirava à indiferença e quase desdém. Sua poltrona era a do meu lado. Concentrada em minha revista sobre boa forma, preferi ignorar, no começo, aquela senhora – mais tarde descobriria que ela tem 33 anos, só dois a mais que eu – que falava um português embaralhado e errado. Mas percebi que estava aflita, pois suspirava profundamente de quando em quando. O motivo era que o filho havia ficado na outra fileira, ao lado. Pensei em trocar de lugar com ele, mas não queria me sentar na poltrona do meio, preferia o corredor. O egoísmo predominou. Que bom que não mudei, no final das contas.

Na hora do serviço de bordo – uma massa em quantidade ínfima e um copo de bebida – fechei minha revista e resolvi saber mais sobre ela. O que uma mulher com aparência de retirante faz aqui? Ela mesma teria pago a passagem? “Meu filho tem uma doença, tem que fazer transplante”. Gelei. Mas mantive a prosa. Ela respondia tudo com naturalidade e inocência, às vezes até rindo, um riso baixo e envergonhado. A comida chegou e percebi que ela copiava cada movimento meu: abre a tampa do prato pronto, pega os talheres de plástico, abre o saquinho de queijo ralado... ops... ela não consegue abrir o sachê e me pede ajuda. A partir daí, viramos velhas amigas que não se viam há muito e precisavam colocar as fofocas em dia. Ela continuava respondendo tudo animada e tímida ao mesmo tempo, sem me encarar muito. Mas eu buscava seus olhos como numa tentativa inconsciente de absorver um pouco do que eles já haviam presenciado. Passei a imaginar Picos, que não tem nada, segundo ela, só uns morros. Tem praça, tem prefeitura e tem escola. O prefeito é o Chico Paraíba, que, como o nome já diz, não é do Piauí. Mas é um homem bom. “Ele fala com todo mundo, pobre ou rico. Eu fui falar com ele pra ajudar meu filho”.

José Alonso faz hemodiálise, toma diferentes remédios e às vezes vomita sangue. Foi outras vezes a São Paulo para fazer exames. Mas sempre com o pai, que é alcoólatra. Saiu dos Alcoólicos Anônimos, que frequentou por cinco anos, e agora voltou a tomar cachaça. “É muito problema”, justifica a mãe. “Homem é mais fraco, mulher enfrenta, eu vim no lugar dele”. Foi sua primeira viagem de avião. “Não deu medo, é até melhor que ônibus, porque não faz assim”, se balança (mas bem que, na hora da aterrissagem, pôs a mão no coração, não sei se por temer o pouso ou por ver o mar de concreto pela janelinha). Desembestou a falar. “Tenho uma sobrinha que foi para a Aparecida pagar promessa”. Contou que conheceu Natal, onde até andou de camelo. Casou-se aos 17 anos. “Com minha mãe era assim, namorou tem que casar”. A família de nove irmãos mora toda no mesmo lug ar. A mãe morreu (de enfarto). O pai é músico na banda da prefeitura. Além de José Alonso, um menino franzino de pele manchada e cara amarrada, tem uma filha de quatro anos. “Não quero ter mais filhos, sou ligada (as trompas)”. O marido se transformou em um problema tão grande quanto o filho doente e só trabalha de vez em quando. “Casamento é difícil”, lamenta.

Renda fixa, só a bolsa-família, de R$ 90,00 para cada filho. “Votei ni Lula, sempre voto nele, ele falou que vai aumentar o bolsa-família”, diz com brilho nos olhos. “Não votei no Alckmin porque, você sabe (me olha constrangida como se me ofendesse), ele nasceu em berço de ouro. O Lula não, ele sabe, já passou pelas coisas”. O problema no bolsa-família é a gambiarra. “Tem criança que não precisa e ganha”, afirma com revolta.

Passa o carrinho da bebida. Na dúvida entre coca-cola light, suco artificial e cerveja Xingu, pede água. O passageiro da janela olha de soslaio. Imaginei-o incomodado com o conversê. Acho que queria dormir, em vez de ficar ouvindo aquele sotaque forte, ininteligível às vezes. Esqueci da revista. A mãe a caminho do transplante me mostra a bíblia, mais surrada do que o livro mais velho que já vi na vida. Mostra ainda o nome e número do telefone do centro de apoio que a receberá na cidade mais rica do País. O papel é sujo e esgarçado. “Não posso perder este número”. A bíblia é leitura diária, mas ela não costuma ir à igreja. “Se Deus quiser, vai dar tudo certo’.

Por instinto, faço algumas anotações sobre tudo aquilo em um bloquinho de papel que me acompanha. Também por instinto, busco algo para presentear-lhe em minha bolsa. Mas não encontro nada útil, além de chaves, documentos e maquiagem usada. Nada à altura dela. Pensei em dinheiro. Mas desisti. Não queria correr o risco de envergonhá-la. Conclui que minha principal função naquele voo atrasado e lotado era lhe dar ouvidos e mostrar que não era melhor por estar com roupas mais caras e ter o cabelo tingido e escovado. Sentia uma mistura de pena, raiva e também culpa. Fiquei com vergonha de falar de mim, nem a idade contei. Se ela perguntasse, mentiria. Só dei nome e a cidade que morava. “Conheci uma menina em Natal parecida com você que também chamava Patrícia”, se surpreendeu, me olhando um pouco mais agora. A vida dura lhe deu mãos com calos, rugas precoces, pouco peso e baix a estatura (menos de um metro e meio, tenho certeza).

Preparando para aterrissar. Ainda sobre as nuvens, um raio de sol bate em seu colo e ela se alegra. “Tá vendo, vai estar calor”, tento tranquilizá-la.

Chegamos. São Paulo está cinzenta. Prometi ajudá-la a pegar a mala na esteira. Os dois me seguem pelo aeroporto imenso, cheio de gente apressada. Antes, uma parada no banheiro. Quando se depara com a torneira automática, se atrapalha e me pede ajuda novamente. Ao ouvi-la me chamando pelo nome, me comovo, mas ajo com naturalidade. “Deixa, ela fecha sozinha”. Ainda a auxilio a tirar o papel toalha para secar as mãos (por que diabos existem tantos equipamentos diferentes para uma tarefa tão simples como esta, reflito naquele momento). Ela parece contente. Eu mais ainda. Sinto-me premiada por tê-la tido como companheira de assento. Queria conversar mais. Pego o número do celular de José Alonso. “Ele ganhou do avô”, conta orgulhosa. Pretendo ligar em alguns dias para saber se a cirurgia foi bem-sucedida. “Você liga mesmo, vou esperar?”, duvida. Na saída, me ofereço para tele fonar para o centro de apoio com o meu celular. Ela consente. O filho tenta mostrar que já conhece tudo (já deve ser o homem da casa na prática), mas é humilde. Deixo-os com remorso e culpa novamente por não ter podido fazer um pouco mais. Os dois sozinhos lá na frente, esperando por uma kombi do SUS. “Fica com Deus”, digo apenas. “Obrigada, Maria”, penso comigo mesma. Maria é o nome dela, como não poderia deixar de ser: Maria Jeaneide Rodrigues.

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