quarta-feira, 10 de março de 2010

Entre as veias de São Paulo

Patrícia Diguê



Um mês em São Paulo. Entre as dezenas de características da Cidade e comportamentos dos paulistanos que me surpreendem (às vezes negativa, outras positivamente), o que mais me chama a atenção é a incrível capacidade que o pessoal tem para inventar formas de ganhar a vida. Quem por aqui já circula há muito tempo, talvez nem pare para reparar nestas coisas. Mas eu me espanto toda hora.
Numa das minhas voltas pra casa, num dos muitos dias chuvosos de São Paulo, me surpreendi com a entrada pela porta de trás do ônibus de um homem carregando um enorme saco. Mostrando contagioso bom humor, se pôs a botar saquinhos de Doritos nas mãos das pessoas. Até parecia promoção. "Doritos e pacotes de bolacha de chocolate, qualquer um R$ 1,00".
Espremendo-me no meio daquela gente cansada do dia todo de trabalho, achei uma maravilha o serviço de bordo. E comi feliz o salgadinho. Dali foi mais de uma hora de viagem, num trecho que normalmente levaria 20 minutos.
Fiquei olhando para o vendedor um tempão. E imaginando que aquele cara era muito mais esperto do que eu, infinitamente mais criativo e com uma inteligência emocional incalculavelmente mais desenvolvida. Sem falar, que não demonstrava qualquer indício de timidez, falando calmamente em meio àquele público todo. “E tá crocante”, comentou uma moça do meu lado, que também parecia bem feliz.
Outra garota, que estava antes da roleta, gritou e pediu dois. Foi nessa hora que notei que dentro dos ônibus há cesto de lixo, bem do lado do cobrador. Vi um homem jogando o saquinho vazio lá e fiquei contente de saber que a educação às vezes chega às camadas menos favorecidas (só às vezes, porque ontem uma garotinha jogou um pacotinho de bala pela janela do metrô – o saquinho deu um voo rasante na senhora de trás, que ficou sem entender de onde havia partido tal ameaça).
A complacência dos cobradores em relação a esses lutadores da vida também é admirável. Parece existir uma condescendência velada em relação a essas milhares de pessoas que penetram em pequenas frestas do jogo social a fim de levar comida todos os dias pra casa. É assim em relação aos camelôs, por exemplo, e vendedores ambulantes em todo o canto.
Bom, em se falando de criatividade, não há concorrência para os camelôs. Eles trocam de produtos conforme a necessidade do cliente (vendendo guarda-chuva quando está chovendo, por exemplo), mudam de local conforme o movimento, driblam a fiscalização etc.
Mas foi outro novo “negócio” que também me encantou pela criatividade. Nas esquinas de quase todos os pontos de ônibus movimentados, você encontra uma barraquinha de café da manhã. São a maioria mulheres, que trazem, em um carrinho de feira, garrafas térmicas com leite e café, e também pães e bolos caseiros. As bancas ficam lotadas.
Comentei tudo isso com uma amiga, que disse que não se trata de novidade. “Você nunca tinha visto? Nossa, é normal”.
Não, não é normal não. Só pensei, pra não contrariar sua visão viciada de achar que isso tudo “é assim mesmo”. Pessoas se virando, vendendo tudo o que você pode imaginar pelas ruas - de abacaxi cortado a cadarço, de lenços a isqueiros, de trufas a óculos de sol -, é sinônimo de uma sociedade doente. Onde as pessoas não têm acesso ao mercado formal de trabalho e se encontram abandonadas pelo poder público. Que, por tudo o que a gente já sabe, não consegue se organizar para amparar quem precisa de apoio para levar uma vida minimamente digna.
Quando reflito sobre tudo isso, é inevitável lembrar dos lugares por onde passei nos últimos dois anos. Claro que a Europa possui uma democracia muito mais madura que a nossa, mas é triste constatar que em lugares como a Inglaterra, por exemplo, nem cachorros você vê abandonados na rua. Deixar uma criança desamparada então... soa surreal para eles, coisa de filme. Velhinhos beirando aos 80 anos debaixo de sol carregando cartazes de propaganda talvez virasse manchete de jornal por lá.
Que daqui pra frente, meu coração não fique anestesiado dentro desta grande selva, que continue como agora, se partindo em uma esquina e voltando a se encher na próxima. Assim é São Paulo.

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