quarta-feira, 10 de março de 2010

A partida

Celso Pinheiro de Oliveira

O porto de Gênova estava um verdadeiro caos naquele começo de outono de 1948.
Os preparativos para a partida do navio faziam com que passageiros, tripulantes, malas e cargas, desenvolvessem um traçado alucinante, como um enorme balé enlouquecido.

À distância, sentado sobre algumas caixas que haviam sido desembarcadas, Giuseppe observava com olhos esquecidos de quem havia deixado ali o corpo para que o pensamento pudesse voar livre.

Capannori havia ficado para trás. Suas ruas estreitas de pedras, seus amigos, sua família. Os passeios com Maria á sombra do aqueduto, os planos e promessas.
Ainda podia sentir o abraço apertado da sua mãe se despedindo. Apertado como se ela quisesse deixar um pedaço do seu corpo colado no seu, uma imaginária proteção para a longa viagem que iria realizar.

Notou nos olhos de sua mãe um marejar que a todo custo ela tentava esconder.
Seu pai trata logo de apressar a despedida. Um abraço rápido e os conselhos finais:
“Vai, filho. O caminho é longo até Gênova e o navio não irá esperar por você. Tome cuidado e lembre-se de todos os conselhos que esse seu velho pai te deu. No Brasil, seu tio Pietro vai te buscar no porto. Vai tranquilo, tudo dará certo".

Brasil? Ele preferia os Estados Unidos, país grande, desenvolvido. Mas os vistos de imigração eram impossíveis de serem conseguidos. Restou o Brasil. Uma carta do tio Pietro prometendo trabalho - em seu pequeno armazém em São Paulo - viabilizou a liberação do seu visto. De lá quem sabe não seria mais fácil chegar a América?
Ah, América! Lá sim era a terra do dinheiro. Rico, poderia mandar muito dinheiro para a sua família. As necessidades e o sofrimento iriam acabar. O Brasil seria só uma escala nessa sua viagem.

A saída de casa, um último adeus. Papà, mamma e seus três irmãos - Carlo, Giovanni e a pequena Rosa, que com seus cinco anos de idade, soluçava no colo da mãe.
Giuseppe apressou o passo. Tinha que ver a Maria, que o aguardava no caminho, perto da estação de trem.

Lá estava ela, com seus cabelos castanhos encaracolados flutuando com a leve brisa que havia.
Ele sentiu seu coração pular que nem cabrito montês ao apertá-la contra seu corpo. Beijos misturados com lágrimas, uma angústia de falar tudo, não deixar nada esquecido.
“Giuseppe, você tem certeza que tem que ir? Será que juntos, trabalhando muito, não conseguimos fazer nossa vida aqui mesmo?"
“Mas, como meu amor? Você sabe que isso é impossível. Trabalhar aonde? A vingança dos alemães, por perderem a guerra, foi destruir tudo. Nossos campos, plantações, até nossas oliveiras derrubaram! O pouco que sobrou os bombardeios americanos se incumbiram de acabar".
“Nossas fábricas trabalham com apenas trinta por cento da produção. Não há trabalho para os que ficaram e para todos os soldados que voltaram da guerra!"
“Você está certo, Giuseppe. Eu quero que você nunca se esqueça de uma coisa... Eu sou e sempre serei sua. Não importa quanto tempo demore, eu vou estar aqui te esperando! Promete que você não vai me esquecer...".
“Eu te prometo, vou voltar. Será aqui que iremos construir nossa família, nossos filhos. Eu vou voltar!".

O apito da chaminé do Dezirade resgata Giuseppe dos seus pensamentos.
Dezirade? Isso era nome para um navio?

Pegando sua mala velha de papelão, toda amarrada com corda para resistir à viagem, se junta a imensa fila que subia para o navio. Na sua grande maioria, jovens como ele, que agora se viam forçados a abandonar a sua pátria em busca da sobrevivência, deixando uma Itália destruída e com fome, fruto da ilusão do fascismo de Benito Mussolini, que havia prometido um país grande e unido.
Os horrores da guerra estavam gravados em sua mente. A morte de Don Aldo Mei e o fuzilamento de mais de quinhentas pessoas, pelos alemães da SS, no vilarejo de Sant'Anna em Lucca, ainda faziam parte das suas noites de insônias. Aos vinte e sete anos tinha a sensação de já ter vivido cinquenta.

Acomodando-se em um canto do convés, Giuseppe espera a partida do navio. Sente o peito apertado, a boca seca. Uma sensação de angústia tomando conta de seu corpo.
Para ele era como se estivesse entrando em um túnel escuro, sem saber quando iria sair e o que iria encontrar. Todo o peso da sua decisão de partir havia se transformado na grande dúvida daquele momento.
Fecha os olhos e tenta guardar os últimos sons e perfumes da sua terra. O badalar do sino da igreja de San Gennaro, o perfume das oliveiras e vinhedos, o sabor da zuppa di farro da sua mãe. Quase pode sentir o gosto do feijão coberto pelo mais saboroso azeite do mundo.

No caís, as últimas amarras são soltas e vagarosamente o navio começa a se afastar.
Acenos e lágrimas são trocados por quem fica e por quem parte.
As pessoas e o caís vão diminuindo, cada vez mais, de encontro com o horizonte.
Mas as vistas e pensamentos de Giuseppe continuam longe. Estão nos campos da Toscana, na sua pequena Capannori, comuna de Lucca.

Uma lágrima, até então contida, escorre por sua face. Única testemunha de uma despedida que nunca terá fim.

"Eu voltarei, eu juro que voltarei!"

3 comentários:

  1. Sugestões que acompanham muito bem esse texto: (1) Visitar pra quem não conhece e voltar pra quem já foi uma vez na vida ao Memorial do Imigrante, na Mooca. É de chorar de emoção!
    (2) Na sequência pegar um atalho até Santos, fazer o passeio de bonde, que passa ao lado do píer no porto onde atracavam os navios vindos do Japão, Europa, Eurásia... para fechar com chave de ouro a vinda dos nossos antepassados ao Brasil. Melhor: faça ao contrário. Comece descendo a serra, vá ao porto, passe ao lado das antigas instalações dos imigrantes. Suba até o Memorial do Imigrante. E cumprimente o diretor Plinio Carnier Jr.

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  2. Muito boas as sugestões Ana.
    Posso dar mais uma, para realizar após as suas?
    Vá até o Aeroporto de Cumbica e embarque para a Itália - destino Toscana.
    Grave as imagens, sons e aromas. A sua alma agradecerá.
    (é bem mais cara que a sua, mas esse é um carnê que vale a pena fazer)

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  3. meldels!!!! Celso, há um filme que retrata a Toscana com tanta fidelidade. Pena que minha memória afetiva nesse momento não resgata o nome da película. Mas embarcando pra Itália, via Cumbica, via Porto de Santos, não importa, uma passada em Toscana, esticada pela região de Veneto, seguindo para Trento. Nem importa a localização no mapa. Navegue. Viaje. Dirija. Visite. Pare. Esqueça o carnê. Tudo por conta da felicidade. Afinal... por que não?

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