quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Eu odeio a minha mãe

Patrícia Diguê


Fico olhando a foto dela, bem dentro dos olhos, tentando imaginar o que deve ter passado na sua cabeça naquela noite de 16 de outubro de 1992. No retrato, ela parece perfeitamente normal e até feliz. “Eu odeio a minha mãe”. A frase de seu filho martela na minha cabeça enquanto escrutino a foto. “O mistério da mãe desaparecida” foi como ficou conhecido o caso nos jornais da Inglaterra. M. Perez saiu de casa naquela sexta-feira para nunca mais voltar, nem viva nem morta. Tinha 48 anos, estava divorciada e tinha dois filhos, A., de 17, e R., de 12. Psiquiatra renomada, especializada em epilepsia, deixou apenas um bilhete aos filhos dizendo, em linhas gerais, que havia falhado como mãe e mulher e que não conseguia corresponder as expectativas da família. Seu carro foi encontrado dias depois a mais de 300 quilômetros. A polícia não entendia por que alguém com a intenção de se suicidar teria dirigido para tão longe e, além disso, como teria sido tão bem sucedida no ocultamento do próprio corpo. Por isso, acreditaram durante meses que ela estava viva. Mas, diante da falta de qualquer pista, M. foi considerada morta. Uma morta sem velório nem enterro, cujo fantasma atormenta a vida de A. e R. até hoje. Para todo mundo, eles dizem que os pais morreram quando eram pequenos. O pai, divorciado da mãe já havia 12 anos, morava no Chile, e morreu poucos anos depois. À época, ele estava doente e impossibilitado de viajar para a Inglaterra para ficar com os filhos. O avô é que veio. Durante muito tempo, os meninos ficaram assim, de mão em mão, de casa em casa. R. teve sérios problemas com drogas na adolescência e hoje sofre de esquizofrenia – carrega caixas de remédios por onde vai -, não consegue tocar projetos a longo prazo, nem assumir compromissos. É como se ele tivesse parado nos 12 anos, sem encarar responsabilidades, sempre dependendo dos cuidados do irmão mais velho, que sem querer acabou se tornando pai e mãe dele depois da tragédia. Não é preciso muito tempo de conversa para que logo revelem o que de verdade ocorreu com a mãe, mas não mantêm o assunto por muito tempo. A. é alcoólatra, sem falar na dependência do cigarro e uso de outras drogas. Tem emprego, amigos, a casa que a família deixou, mas é mentalmente fraco. “Bebo pra esquecer a realidade, aí eu durmo”, tenta explicar. Coleciona histórias tragicômicas sobre as incontáveis vezes que acordou em lugares sem saber onde estava. O discurso de que vai abandonar o álcool já não encontra qualquer credibilidade entre as pessoas que estão ao redor. Além da fuga na cerveja e na vodka, vive constantemente fazendo planos de mudar completamente de vida. Mas, na realidade, parece não ter forças para tomar qualquer iniciativa. Vive querendo fugir, dizem. “Vou comprar um terreno na Espanha e um pastor alemão”, conta. “Resolvi ir para o Japão, aprender a ser chef especializado em sushi”, sonha. Nas horas vagas, bebe. E, muitas vezes, tem crises de choro. E, sempre que bebe, diz que vai abandonar o emprego, o que já chegou a fazer, mas conseguiu reverter a situação após voltar à sobriedade. São pessoas doces, apesar disso, carentes e amorosas, sempre com um sorriso aberto e um bom humor contagiante. Mas quem os conhece sabe que a alegria esconde almas tristes e perdidas. A impressão é de que, inconscientemente, desejem morrer cedo. Na casa deles, algumas poucas fotografias em meio a latas vazias de cerveja mostram crianças felizes, inconscientes do que estava por vir.

Hoje encontrei A. Parecia feliz e saudável. Engordou. Voltava de um mercado com uma sacola cheia de comida. Um bom sinal, já que, quando embala nas noitadas, não se alimenta. Disse que não bebia havia sete dias e que, desta vez, estava decidido a abandonar o vício de verdade.

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